o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
68 diAcríticA<br />
que tiras o vesti<strong>do</strong> por cima da cabeça, / coluna <strong>de</strong> fogo, pela minha<br />
morte acima» (550). O acto poético ressente-se da ida<strong>de</strong> <strong>do</strong> autor empírico:<br />
o pólo que concentra toda a energia transfere-se, pelo olhar, para<br />
a «coluna <strong>de</strong> fogo» feminina, limitan<strong>do</strong>-se o elemento masculino ao<br />
prazer <strong>do</strong> olhar e à obscenida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, agora sem a «força directa»<br />
que inculcava ao amor e à palavra: «aos vinte ou quarenta os poemas<br />
<strong>de</strong> amor têm uma força directa, / e alguém entre as obscuras hierarquias<br />
apo<strong>de</strong>ra-se <strong>de</strong>ssa força, / mas ao [sic] setenta e sete é tu<strong>do</strong> obsceno,<br />
/ não só amor, poema, <strong>de</strong>samor, mas setenta e sete em si mesmos<br />
/ anos horren<strong>do</strong>s» (548).<br />
A violência poética <strong>do</strong> acto amoroso, quase sempre apresentada<br />
metaforicamente ao longo da obra, é momentaneamente substituída<br />
por uma outra violência igualmente presente nas palavras, mas agora<br />
<strong>de</strong> forma explícita, num último grito <strong>de</strong> revolta <strong>de</strong> Prometeu (mesmo<br />
que a faca não corte o fogo) perante a ida<strong>de</strong> que tu<strong>do</strong> lhe vai retiran<strong>do</strong>.<br />
Desta dificulda<strong>de</strong> em adaptar a energia cria<strong>do</strong>ra ao corpo que<br />
se <strong>de</strong>grada resulta um conjunto <strong>de</strong> imagens vertidas em calão (cf. 543-<br />
549) que funciona como um vaso <strong>de</strong> expansão e que, <strong>de</strong> forma oblíqua,<br />
faz recordar o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> algumas experiências que o narra<strong>do</strong>r viveu<br />
quan<strong>do</strong> viajou pela europa em os passos em volta, embora em contexto<br />
distinto e com outra explicação.<br />
Ultrapassada, por momentos, a selecção vocabular menos comum,<br />
reencontra-se, nos poemas seguintes, a energia incan<strong>de</strong>scente sugerida<br />
por uma linguagem que, por força das relações intempestivas, remete<br />
para o espaço simbólico, on<strong>de</strong> se reforça a relação entre a biografia <strong>do</strong><br />
poeta e a vida das palavras. 5 Num registo <strong>de</strong>sembaraça<strong>do</strong> <strong>de</strong> excessos e<br />
no alinhamento temático <strong>do</strong>s poemas anteriores, «regresso ao resplen-<br />
<strong>do</strong>r / (…) / (…) regresso para beber (…) / nas linhas <strong>de</strong> luz ao <strong>de</strong> cima<br />
da água vertida, / colhida à mina, oculta, baixa, centígrada, / (…) / (…)<br />
oh / matriz! o ru<strong>de</strong>, o redivivo, / o resplen<strong>do</strong>r» (553). O encontro com<br />
o elemento feminino continua a representar o leitmotiv <strong>do</strong> poema,<br />
embora tenha si<strong>do</strong> ultrapassada a frustração da ida<strong>de</strong>, sugerin<strong>do</strong> aliás<br />
que a distanciação ou elevação <strong>do</strong> da<strong>do</strong> biográfico a acto poético sirva<br />
para sublimar e fazer renascer das cinzas aquele que, alguns momentos<br />
atrás, se encontrava prostra<strong>do</strong>, quase perdi<strong>do</strong>. Da matriz, que só<br />
po<strong>de</strong> ser feminina, recolherá a água «colhida à mina» e assim servirá a<br />
imaginação para colmatar as limitações <strong>do</strong> corpo.<br />
5 Na relação entre a biografia e a palavra, leia-se, acerca <strong>de</strong> os selos <strong>de</strong> <strong>Herberto</strong><br />
Hel<strong>de</strong>r, «A metáfora <strong>do</strong> corpo» (Silva, 2000: 144-184).