o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
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singulAridA<strong>de</strong>s <strong>de</strong> umA moçA e nArcotizAção <strong>do</strong> Herói<br />
293<br />
Se neste diálogo, por forma a evitar um compromisso assumi<strong>do</strong><br />
sem reservas, a filha <strong>do</strong> senhor <strong>de</strong> Ansiães se acha limitada na instigação<br />
amorosa <strong>de</strong> Baltazar, noutras passagens, on<strong>de</strong> tal constrangimento<br />
não existe, Mécia insinua apreço e, nas entrelinhas, o acor<strong>do</strong> pressenti<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> uma cumplicida<strong>de</strong> sentimental com o morga<strong>do</strong> <strong>de</strong> Olarias. Por<br />
exemplo, tenha-se presente aquele momento em que Baltazar, num<br />
gesto revela<strong>do</strong>r da sua <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za e <strong>do</strong> muito que o separa <strong>do</strong> primo<br />
D. José, cuja falta <strong>de</strong> parcimónia se espraia não só no conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> que<br />
diz como na maneira <strong>de</strong>morada como o diz, interrompe, a fim <strong>de</strong> não<br />
maçar os seus ouvintes, a narrativa <strong>do</strong> que tem si<strong>do</strong> a sua vida. Lopo<br />
<strong>de</strong> Sampaio incita-o a continuar, dizen<strong>do</strong> folgar muito <strong>de</strong> lhe ouvir<br />
as miu<strong>de</strong>zas da vida, e Mécia aproveita a brecha entre o discurso <strong>de</strong><br />
Baltazar e o <strong>do</strong> pai para dizer: «–Também eu...» (i<strong>de</strong>m, 24) 10 . O narra<strong>do</strong>r<br />
completa a intervenção <strong>de</strong> Mécia com a <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> acompanhamento<br />
paraverbal: «murmurou a menina, e corou, como se pensan<strong>do</strong><br />
não gera no rapaz o encavalgamento inusita<strong>do</strong> <strong>de</strong> sentimentos contraditórios. Baltazar<br />
acredita que achou o coração <strong>de</strong> Mécia livre e fica suspenso nessa convicção. Por mais<br />
suspeita e <strong>de</strong>sarmante que possa ser, nesta particular circunstância, a forma como se<br />
conclui a conversa (silêncio e cogitação da morgada, relembre-se, como resposta à pergunta<br />
lançada pelo morga<strong>do</strong> sobre se efectivamente se podia consi<strong>de</strong>rar «o mais feliz<br />
homem <strong>de</strong>ste mun<strong>do</strong>»), a credulida<strong>de</strong> <strong>do</strong> moço permanece imperturbável. O sentimento<br />
eufórico <strong>de</strong> confiança como que se torna intenso e inabalável, não ce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> lugar a<br />
nenhum sintoma <strong>de</strong> insegurança, até ao ponto <strong>de</strong> o primogénito <strong>de</strong> Olarias prescindir <strong>de</strong><br />
ouvir resposta à questão que formulou. Não necessitou que a moça lhe respon<strong>de</strong>sse afirmativamente,<br />
para implodir <strong>de</strong> euforia, «expiran<strong>do</strong> fogo <strong>do</strong> coração» (sm. 80). O facto<br />
<strong>de</strong> o suspeito silêncio da rapariga o não intrigar, o que diz bem da sua flagrante falta<br />
<strong>de</strong> discernimento, não surpreen<strong>de</strong> nem comporta nada <strong>de</strong> estranho se tivermos em<br />
conta a mesma ausência <strong>de</strong> discernimento aquan<strong>do</strong> <strong>do</strong> juramento que ficou por prestar.<br />
Se Baltazar não <strong>de</strong>sconfiou da inibição <strong>de</strong> Mécia naquele ponto crucial da conversa, é<br />
natural que também agora não repare, inebria<strong>do</strong>, como está, pela convicção <strong>de</strong> Mécia o<br />
amar, na significação pressuposta no silêncio e na cogitação da rapariga. Não que Mécia<br />
seja um contraponto <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> discreto ou até vela<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>sejo amoroso <strong>do</strong> morga<strong>do</strong>.<br />
Baltazar é que se acha <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por um irrefreável e voraz <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser correspondi<strong>do</strong><br />
que lhe estreita ou mesmo turva o entendimento das implicações semânticas e pragmáticas<br />
<strong>do</strong> que diz (comunicação verbal) e se dispensa <strong>de</strong> dizer (comunicação não-verbal)<br />
Mécia. Caso contrário, facilmente se aperceberia, e <strong>de</strong> antemão, <strong>do</strong> coquetismo da moça,<br />
coquetismo que, nesta conversa, veio à tona (<strong>do</strong>ravante assumirá uma manifestação<br />
cada vez mais sólida e consistente) e cuja comparência se revela extremamente significativa<br />
como sinal <strong>de</strong> que Mécia jamais se amoldará às suas pretensões sentimentais.<br />
10 Isto não invalida que esta fala <strong>de</strong> Mécia não resulte tão-só <strong>de</strong> uma afirmada<br />
vonta<strong>de</strong>, por parte da moça, <strong>de</strong> ouvir o relato autobiográfico <strong>de</strong> Baltazar, o que, a ser<br />
assim, lhe supõe um duplo estatuto: o <strong>de</strong> sedutora mas igualmente o <strong>de</strong> seduzida. Com<br />
o avançar da narrativa, veremos que o primeiro supera largamente o segun<strong>do</strong>, até ao<br />
ponto <strong>de</strong> tornar esse segun<strong>do</strong> questionável.