o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
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(77 × 14) + 2009: 30 ⊃ belezA (HerbertequAção)<br />
115<br />
porque o único senti<strong>do</strong>, digo-to agora, é a beleza mesmo,<br />
a tua, a proibida, entrar por mim a<strong>de</strong>ntro<br />
e fazer uma gran<strong>de</strong> luz agreste, <strong>de</strong> corpo e encontro, <strong>de</strong> ver a Deus se houvesse,<br />
[luz terrestre, em<br />
mim, bicho vil e vicioso<br />
(i<strong>de</strong>m, 548, 549)<br />
Devo começar pelos números? Seria melhor começar pelo assombro<br />
que causa em mim, leitor, um poema como esse. Por isso começo<br />
pelos números, lembran<strong>do</strong> que <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r, num sagitariano<br />
momento <strong>de</strong>ste 2009, completa 80 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Portanto, não é<br />
absur<strong>do</strong> cogitar que o poema quiçá tenha si<strong>do</strong> escrito em 2006, quan<strong>do</strong><br />
o sujeito civil tinha precisos 77 anos. Parto da cogitação para uma<br />
reles questão especulativa: se assim, por que não figuram esses trinta e<br />
oito versos na «inédita» <strong>de</strong> 2008? É evi<strong>de</strong>nte que ignoro a resposta,<br />
e preciso partir logo para o poema, sem mais inúteis circunlóquios:<br />
«aos vinte ou quarenta os poemas <strong>de</strong> amor têm uma força directa, /<br />
e alguém entre as obscuras hierarquias apo<strong>de</strong>ra-se <strong>de</strong>ssa força, / mas<br />
ao setenta e sete é tu<strong>do</strong> obsceno». encontro-me entre os «vinte» e os<br />
«quarenta», mais para a última que para a primeira ida<strong>de</strong>: como leio<br />
esse poema? Preciso recuperar duas coisas que sei <strong>de</strong> <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r,<br />
lugares-comuns mas bons lugares: 1) a poesia herbertiana costuma<br />
apresentar sujeito(s) forte(s); 2) <strong>Herberto</strong> exige que o leitor se ponha<br />
em relação.<br />
Ou, 1) + 2) = a poesia herbertiana, se costuma apresentar sujeito(s)<br />
forte(s), solicita que seu leitor em relação também seja um sujeito forte,<br />
mas em relação. Dúvida minha: serão <strong>do</strong>is sujeitos fortes numa equação<br />
difícil ou falar assim em sujeito forte no caso herbertiano é precipita<strong>do</strong>?<br />
Se o for, «é tu<strong>do</strong> obsceno» aos «setenta e sete», aos «vinte»,<br />
aos «quarenta», aos trinta e cinco etc. pois, «segun<strong>do</strong> o amor tiver<strong>de</strong>s,<br />
/ tereis o entendimento <strong>de</strong> meus versos!» (Camões, 2005: 117). Consi<strong>de</strong>ro,<br />
então, o seguinte: em <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r, o sujeito seja forte, tu<strong>do</strong><br />
bem, mas se vê ameaça<strong>do</strong>. Ou incompleto. Porque interessa ao poeta o<br />
que interessa ao poema («brilhan<strong>do</strong>, autor, / como se ele mesmo fosse<br />
o poema» (i<strong>de</strong>m, 530)), e o que interessa ao poema não é tanto o poeta,<br />
mas o que o mun<strong>do</strong> faz ao poeta e o que o poeta faz ao mun<strong>do</strong>, o<br />
poema, portanto. Daí a relação. Daí o leitor, que, elemento tão forte<br />
<strong>do</strong> jogo <strong>de</strong>ssa poesia, terá «o entendimento» <strong>de</strong>sses «versos» «segun<strong>do</strong><br />
o amor» tiver. Daí o espelhamento: tenho trinta e cinco anos e não<br />
mais tenho trinta e cinco anos a partir <strong>do</strong> assombro que me causa esse<br />
poema: passo a ter não mais nem menos que «setenta e sete».