o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
inVestigAções PoéticAs <strong>do</strong> terror<br />
175<br />
extraordinários, eu próprio… enfim, às vezes já não consigo arrumar<br />
tu<strong>do</strong> isso». Uma história é feita <strong>de</strong> histórias <strong>do</strong>s outros e <strong>de</strong> quem as<br />
faz, fronteira afinal in<strong>de</strong>cidível e como tal perturba<strong>do</strong>ra. Chamemos<br />
insónia a essa perturbação, o ser <strong>de</strong>sperta<strong>do</strong> para o terror que há em<br />
tu<strong>do</strong>, o <strong>de</strong> nada ter uma representação. Num «quarto vazio», tal como<br />
num <strong>de</strong>serto (Álvaro <strong>de</strong> Campos: «Gran<strong>de</strong>s são os <strong>de</strong>sertos e tu<strong>do</strong> é<br />
<strong>de</strong>serto») o excesso <strong>de</strong> noite agiganta as sombras: «(…) acorda-se às<br />
quatro da manhã num quarto vazio, acen<strong>de</strong>-se um cigarro… está a<br />
ver? A pequena luz <strong>do</strong> fósforo levanta <strong>de</strong> repente a massa das sombras,<br />
a camisa caída sobre a ca<strong>de</strong>ira ganha um volume impossível,<br />
a nossa vida… compreen<strong>de</strong>?… a nossa vida, a vida inteira, está ali<br />
como… como um acontecimento excessivo. Tem <strong>de</strong> se arrumar muito<br />
<strong>de</strong>pressa. Há felizmente o estilo».<br />
Primeiro, note-se que o «como» em poesia vai dar ao acontecimento<br />
excessivo e não à comparação pedagógica. Segun<strong>do</strong>, veja-se<br />
que é a luz que faz nascer as sombras e o impossível apresentar-se,<br />
sen<strong>do</strong> o impossível um nome para o terrível, o irrepresentável.<br />
Terceiro, entenda-se que o irrepresentável é insuportável. A literatura é<br />
pois uma questão <strong>de</strong> vida, salvar a vida. É esse o problema <strong>de</strong> arrumar<br />
o que não tem arrumação, a «<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m estuporada da vida». É isso<br />
que é dito e feito em vários poemas <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos, por exemplo,<br />
em «quási» ou em «gran<strong>de</strong>s são os <strong>de</strong>sertos e tu<strong>do</strong> é <strong>de</strong>serto».<br />
Repare-se que <strong>de</strong>ste último poema a sugestão da cinza que cai sobre a<br />
camisa <strong>de</strong> cima <strong>do</strong> monte <strong>de</strong> camisas se <strong>de</strong>sloca para «estilo». A cinza<br />
<strong>do</strong> cigarro e a massa das sombras que o acen<strong>de</strong>r <strong>do</strong> cigarro <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia<br />
são indícios <strong>do</strong> acontecimento excessivo, o qual é o agente da<br />
arrumação, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> transformação da «<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m estuporada»<br />
ou <strong>do</strong>s «<strong>de</strong>sertos». No poema <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos, o motivo para<br />
arrumar sempre é «Não posso levar as camisas na hipótese e a mala<br />
na razão». A arrumação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e da vida, conecta<strong>do</strong>s, não é apenas<br />
uma questão <strong>de</strong> palavras e <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> palavras. Admiti-lo seria<br />
adaptar-se ao niilismo, ao tanto-faz, ou dê-por-on<strong>de</strong>-<strong>de</strong>r. Mas basta ser<br />
um pouco pensante para não conseguir arrumar o mun<strong>do</strong> nem a vida,<br />
pois o pensar não é apenas usar a razão e fazer hipóteses. É no pensar<br />
que o caos ameaça qualquer um, e o caos é a própria irrupção sensível<br />
da distância entre as coisas e a linguagem que as diz – a intuição <strong>do</strong><br />
«acontecimento excessivo».<br />
Note-se que nos versos cita<strong>do</strong>s se <strong>de</strong>ixa implícito que <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> arrumar a mala, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> meter toda a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m da vida lá<br />
<strong>de</strong>ntro, ainda seria preciso arrumar a própria mala (<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> outra