o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
ecensões<br />
315<br />
este é o ponto <strong>de</strong>cisivo da <strong>de</strong>sagregação, <strong>do</strong> sofrimento sem tréguas que dita<br />
um irremediável mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser que arrasta para uma existência <strong>de</strong>stroçada, que<br />
<strong>de</strong>fine uma mente eternamente massacrada por ser aquilo que não é e vice-versa,<br />
mente enredada numa dualida<strong>de</strong> insuperável e que é consumida pela insatisfação<br />
total, uma mente, numa palavra, aporética. Leia-se, por exemplo, a primeira estrofe<br />
<strong>de</strong> «O Suicídio Involuntário ou A Máquina <strong>de</strong> Morrer»: «Cheio <strong>de</strong> fome, e sem<br />
po<strong>de</strong>r comer, / cheio <strong>de</strong> amor, e sem po<strong>de</strong>r amar, / cheio <strong>de</strong> voo, e sem po<strong>de</strong>r voar, /<br />
Cheio <strong>de</strong> ser, e sem po<strong>de</strong>r ser. //» (vv. 1-4, p. 320). A impossibilida<strong>de</strong> total prolongase<br />
pelo poema to<strong>do</strong>, que termina assim: «e, sem que <strong>de</strong>va, hei-<strong>de</strong> seguir <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>,<br />
/ e, sem que viva, hei-<strong>de</strong> seguir viven<strong>do</strong>, / e, sem amar, hei-<strong>de</strong> morrer aman<strong>do</strong>. //»<br />
(vv. 12-14). Tu<strong>do</strong> é aporia ou parece sê-lo.<br />
Veja-se agora esta implacável <strong>de</strong>scrição, a soar a <strong>de</strong>spojo mortal («que linda<br />
manhã! e para nada!», p. 302): «Cadáver que se cheira e se lê, / serpente que se<br />
mor<strong>de</strong>, empeçonhada.» (vv. 7-8). e antes disso: «[...] o meu olhar só vê / a fria<br />
escuridão alucinada» (vv. 3-4). esta fatídica e tumular danação sem fim, que ten<strong>de</strong><br />
a remeter para o imaginário <strong>do</strong> Romantismo negro (Mário Praz), danação que<br />
contrasta com a iluminada realida<strong>de</strong> exterior enunciada no incipit e que parece<br />
agudizar-se à medida que os versos avançam, danação <strong>de</strong> quem, arrebata<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s, se vê reduzi<strong>do</strong> a nada, inclusive, <strong>de</strong>stituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> nome – «filhos e terra,<br />
casa, nome, até» (v. 6) –, viven<strong>do</strong> numa situação <strong>de</strong> solidão radical que o apagamento<br />
i<strong>de</strong>ntitário parece tornar irreversível, esta danação explica-se por um esta<strong>do</strong><br />
inconcebível e dilacera<strong>do</strong>, o <strong>de</strong> quem tu<strong>do</strong> preten<strong>de</strong> e, muito para<strong>do</strong>xalmente,<br />
nada quer, confinan<strong>do</strong>-se a um sofrimento interior e sem manifestações («e o<br />
choro é seco, proibi<strong>do</strong> o pranto», v. 14) e <strong>do</strong> qual estes poemas serão a mais funda<br />
expressão. Ou, se se preferir, estamos em presença <strong>de</strong> uma existência comensurável<br />
com a imagem <strong>do</strong> poeta maldito (ressonância romântica).<br />
A condição <strong>de</strong> poeta maldito, maldito aqui no senti<strong>do</strong> não tanto social mas<br />
pessoal, ressurge em várias outras composições. em «Fatalida<strong>de</strong>» (p. 321), o sacrifício<br />
<strong>de</strong> um poeta fatal e trágico con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> a sê-lo e que amaldiçoa esta sua infeliz<br />
condição, lemos em duas estrofes <strong>de</strong>cisivas: «Ah! Por que, em vez <strong>de</strong> sob estrela<br />
plácida, / nasci sob a malvada, treda e ácida / cabeleira sinistra dum cometa? // Ah!<br />
Pelo que, em vez <strong>de</strong> só cantor / <strong>de</strong> rouxinóis e <strong>de</strong> anjos <strong>do</strong> Senhor / nasci fatal e<br />
trágico poeta? //» (vv. 9-14). Outro poema, «Torre <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero» (p. 306), começa<br />
<strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>: «– Irmãos Poetas: um Poeta morre / <strong>de</strong> angústia e Morte, e vós nem o<br />
cuidais, / fecha<strong>do</strong>, ou enterra<strong>do</strong>, em negra Torre / <strong>de</strong> Desespero, que o não torna<br />
mais. //» (vv. 1-4). A afinarem com a maiúscula <strong>de</strong> Poeta encontra-se a Morte, a<br />
Torre, que é negra, o Desespero. Tu<strong>do</strong> é assim assombroso, o poeta (sobre)vive<br />
como que no reduto <strong>de</strong> uma Torre fechada – a imagem da Torre como o lugar<br />
tétrico e obscuro da mente torturada – e nem existe, hélàs, qualquer tipo <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong><br />
entre pares capaz <strong>de</strong> servir <strong>de</strong> travão às consequências in<strong>de</strong>sejadas <strong>de</strong>sta<br />
angústia sem fim. Tu<strong>do</strong> no poeta é sofrimento; e o sofrimento parece não sofrer<br />
limites. Aliás, o poeta (maldito) não carece somente <strong>do</strong> socorro <strong>do</strong>s seus, é igualmente<br />
aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> pelo Cria<strong>do</strong>r Supremo, o que diz bem da sua extrema marginalida<strong>de</strong><br />
e <strong>do</strong> anátema a que foi vota<strong>do</strong>: «Pe<strong>de</strong> socorro a Deus, que o não socorre»<br />
(v. 6). e tal como nos poemas anteriores, uma situação <strong>de</strong> dualida<strong>de</strong> irresolúvel<br />
– grifada até por itálico, note-se –, fonte <strong>de</strong> eterna (sísifa) perdição: «Varai <strong>de</strong> pasmo