15.04.2013 Views

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

270 diAcríticA<br />

este «ficar <strong>de</strong> pedra» é, <strong>de</strong> alguma forma, sub-cutâneo, uma<br />

muralha secreta mas eficaz. ALA não <strong>de</strong>svairou, não enlouqueceu,<br />

protegeu-se <strong>de</strong>sse abismo (ou até <strong>de</strong>ssa tentação) crian<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong><br />

corpo um corpo <strong>de</strong> pedra – e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse corpo <strong>de</strong> pedra há essa coisa<br />

que gasta como um cancro. O corpo <strong>de</strong> pedra não comunica com<br />

o exterior, mas como é sub-cutâneo não se <strong>de</strong>ixa ver <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o exterior.<br />

Ou seja, para os outros, ALA parece não ter muda<strong>do</strong>:<br />

Uma coisa a que achei graça quan<strong>do</strong> aí estive foi à surpresa das<br />

pessoas, à sua <strong>de</strong>silusão por eu estar na mesma. Sinto agora que tinham<br />

razão e que foi imper<strong>do</strong>ável da minha parte, usar o aspecto <strong>do</strong> costume:<br />

imper<strong>do</strong>ável e <strong>de</strong> mau gosto. É óbvio que eu teria <strong>de</strong> vir páli<strong>do</strong>, esquelético,<br />

com um osso a atravessar o nariz, sei lá, mas – diferente! Com o<br />

aspecto com que as pessoas supõem que Serpa Pinto voltava <strong>de</strong> África,<br />

uma in<strong>de</strong>finível mistura <strong>de</strong> caça<strong>do</strong>r <strong>de</strong> feras e <strong>de</strong> feiticeiro <strong>de</strong> tribo.<br />

Voltan<strong>do</strong> igual feria-as, é claro, gravemente, na sua imaginação, que é<br />

a pior ofensa que se po<strong>de</strong> fazer a quem quer que seja (CG: 314, sublinha<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong> autor).<br />

A ironia não altera a gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>sentendimento <strong>de</strong> fun<strong>do</strong>.<br />

Até porque ele correspon<strong>de</strong>, na dimensão colectiva, à impossibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> o país ouvir e pensar a sua guerra colonial. essa incomunicação<br />

nasce <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo nas cartas, no progressivo silenciamento sobre os<br />

episódios especificamente militares. No princípio, ALA ainda conta os<br />

primeiros morteiros, uma cena pungente com feri<strong>do</strong>s (cf. CG: 95-96),<br />

mas pouco <strong>de</strong>pois é já o silêncio: «não vou falar sobre isso, mas ontem<br />

passei aqui o dia mais dramático da minha vida» (CG: 147). As razões<br />

não se pren<strong>de</strong>m apenas com a censura, mas com a quase impossibilida<strong>de</strong>,<br />

ou a tarefa imensa que seria explicar como aquilo que vive em<br />

Angola, na frente <strong>de</strong> combate, é diferente <strong>do</strong> que em Portugal se imagina<br />

ou se julga saber. É certo que as cartas não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> revelar<br />

algumas das sintomatologias típicas <strong>do</strong> cenário <strong>de</strong> guerra: solda<strong>do</strong>s<br />

que en<strong>do</strong>i<strong>de</strong>cem, heroísmos abnega<strong>do</strong>s e silenciosos, personagens<br />

lendárias <strong>de</strong> burlesco, e até a auto-verificação <strong>de</strong>ssa espécie <strong>de</strong> corpo<br />

instintivo e pavloviano: «Acor<strong>do</strong> agora instantaneamente ao mínimo<br />

ruí<strong>do</strong> como o James Bond. Um galo canta ao longe, acor<strong>do</strong>. Um<br />

rato cruza o chão acor<strong>do</strong>. Amanhece, acor<strong>do</strong> ao som da luz. Acor<strong>do</strong><br />

acor<strong>do</strong> acor<strong>do</strong>.» (CG: 149). Mas o que <strong>de</strong> mais grave se pressente ou se<br />

infere <strong>de</strong> algumas anotações não tem realmente <strong>de</strong>senvolvimento nas<br />

cartas. ALA está assim prisioneiro <strong>de</strong> uma situação histórica, empareda<strong>do</strong><br />

entre o confronto diário com a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> fim – «Todas<br />

as noites ao apagar a luz me <strong>de</strong>speço mentalmente <strong>de</strong> mim mesmo,

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!