15.04.2013 Views

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

264 diAcríticA<br />

Nietzsche dizia que o casamento é uma longa conversa; Kun<strong>de</strong>ra<br />

(que provavelmente também leu esse Nietzsche) falava <strong>do</strong> diálogo<br />

continua<strong>do</strong> que os casais mantêm através <strong>do</strong>s anos e que os faz criar<br />

um sistema próprio <strong>de</strong> referências e <strong>de</strong> metáforas. ALA e Maria José<br />

estão no início <strong>do</strong> seu casamento, e há a guerra <strong>de</strong> permeio. Não<br />

espanta a urgência e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste diálogo. Sublinhe-se diálogo.<br />

Porque se há alguma coisa que ALA diz <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início é que as cartas<br />

que vêm <strong>de</strong> Portugal, e sobretu<strong>do</strong> as cartas que vêm <strong>de</strong> Maria José, são<br />

o outro la<strong>do</strong> imprescindível <strong>de</strong>ste diálogo. A razão é simples e dita com<br />

aquela clareza em que se lê um <strong>de</strong>sespero que se olha bem <strong>de</strong> frente:<br />

«a vida, nestas paragens, é tão isolada e triste (as <strong>de</strong>moras <strong>do</strong>s jornais<br />

são <strong>de</strong> semanas) que as cartas são a coisa mais importante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

para nós» (CG: 37). Note-se <strong>de</strong> passagem o que há <strong>de</strong> estranho neste<br />

«nós», precisamente por ser um «nós» em que cada um <strong>de</strong>seja aqui<br />

retomar o fio da sua vida individual, aquilo mesmo que anularia por<br />

completo este «nós» imposto pela guerra.<br />

A logística <strong>de</strong>ste diálogo é difícil. Umas vezes ALA, outras Maria<br />

José, cada um se queixa, <strong>de</strong> vez em quan<strong>do</strong>, <strong>de</strong> que o outro não escreve<br />

– e <strong>de</strong>pois as cartas chegam todas juntas. Mas mesmo apren<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />

isto com o correr <strong>do</strong> tempo, por vezes o <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> não ter notícias<br />

fala mais alto, transforma o outro em bo<strong>de</strong> expiatório: já quase com<br />

um ano <strong>de</strong> vida militar, ALA ainda pergunta, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> seis dias sem<br />

correio: «Por que raio <strong>de</strong> merda é que não me escreves?» (CG: 311).<br />

O maço enorme <strong>de</strong> cartas chegará cinco dias <strong>de</strong>pois.<br />

em to<strong>do</strong> o caso, o diálogo vai-se fazen<strong>do</strong>. Para já, falo apenas<br />

<strong>do</strong> diálogo amoroso, se bem que a confiança e partilha da situação<br />

<strong>de</strong> guerra e das preocupações literárias <strong>de</strong> ALA também façam parte<br />

disso. Como sempre, a relação amorosa tece-se daquelas coisas triviais<br />

que compõem a nossa vida – juntar dinheiro para o futuro, comentários<br />

às obra na casa, pequenos episódios <strong>do</strong> dia-a-dia –, e <strong>de</strong> uma<br />

intimida<strong>de</strong> que a separação torna memória <strong>do</strong>lorosa e sau<strong>do</strong>sa, <strong>de</strong>sejo<br />

sôfrego, me<strong>do</strong> fantasmático e antecipação jubilosa. A fórmula amorosa<br />

<strong>de</strong> ALA é «gosto tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> ti», por vezes escrito inteiramente em<br />

maiúsculas. Não é uma fórmula que i<strong>de</strong>alize o outro, mas que é capaz<br />

<strong>de</strong> amar «as suas fúrias, [...] as suas zangas e a solenida<strong>de</strong> calada e<br />

digníssima <strong>do</strong>s seus amuos» (CG: 20). Diria que é um bom princípio ser<br />

capaz <strong>de</strong> amar no outro aquilo que se sabe que em nós são os nossos<br />

<strong>de</strong>feitos mais visíveis. Naturalmente, esses <strong>de</strong>feitos atravessam estas<br />

cartas e há momentos em que explo<strong>de</strong>m. Mas dir-se-ia que explo<strong>de</strong>m

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!