o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
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«e o temPo não PAssA»: As cArtAs dA guerrA <strong>de</strong> António lobo Antunes<br />
263<br />
aquilo <strong>de</strong> que somos expropria<strong>do</strong>s (e somos expropria<strong>do</strong>s pela nossa<br />
condição mortal e pela muita <strong>de</strong>mência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que para nós<br />
próprios criámos ou nos criaram – o que numa guerra se dá a ver<br />
numa dimensão <strong>de</strong> escândalo).<br />
Mas «o resto é nosso» não é uma posse, é um trânsito «d’este viver<br />
aqui neste papel <strong>de</strong>scripto». Sabemos bem que nenhuma <strong>de</strong>scrição<br />
satura ou se substitui à realida<strong>de</strong>, antes a liberta para que fora <strong>do</strong> papel<br />
continue a haver vida e a possamos nós viver. «O resto é nosso» é<br />
uma injunção à leitura não possessiva, não judicativa no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
rastrear <strong>do</strong> ridículo, é uma injunção a escutar o pulsar <strong>de</strong> vida que<br />
existe quan<strong>do</strong> alguém confessa que «to<strong>do</strong> eu sou lugares comuns,<br />
porque a infelicida<strong>de</strong> e a solidão não são muito originais nem<br />
muito cria<strong>do</strong>ras... Olho para o papel e só escrevo parvoíces tristes.»<br />
(CG: 410). O resto que é nosso começa logo aqui, no lugar comum e<br />
na parvoíce triste, e dirige-se a essa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida que não precisa <strong>de</strong><br />
ser <strong>de</strong>scripta neste papel aqui, porque é apenas vida anónima, humana,<br />
ao alcance <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s – mas é preciso vivê-la e talvez (talvez) merecê-la.<br />
2. as tuas cartas chegam cheias <strong>de</strong> amor, leio-as como quem reza<br />
ALA escreve quase diariamente a Maria José. 5 exceptuam-se os<br />
perío<strong>do</strong>s em que as movimentações no terreno obrigam a estar dias<br />
fora. Nos primeiros oito meses <strong>de</strong> separação, o total <strong>de</strong> dias em que<br />
não há um aerograma <strong>de</strong> ALA é pouco mais <strong>de</strong> trinta. Convém lembrar:<br />
neste mun<strong>do</strong> não havia internet, telemóvel ou sequer telefone<br />
entre Lisboa e um lugar perdi<strong>do</strong> na extensão angolana, como era Gago<br />
Coutinho ou Chiúme. Fora os aerogramas, a incomunicação era total.<br />
5 ALA parte para Angola em 6 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1971. De 7 <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 71 a 15 <strong>de</strong><br />
Setembro <strong>do</strong> mesmo ano (251 dias) escreve 178 aerogramas. As cartas interrompemse<br />
porque ALA vem <strong>de</strong> férias a Lisboa. De 3 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 71 a 17 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 72<br />
(165 dias), escreve 106 aerogramas. Nesta altura, a mulher e a filha vêm viver para a<br />
Marimba. em Julho <strong>de</strong> 72 a mulher a<strong>do</strong>ece com hepatite e vai para Luanda, a filha<br />
fica também em Luanda, em casa <strong>de</strong> familiares. Nesse perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> separação, entre<br />
15 <strong>de</strong> Julho e 30 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 72, ALA escreve-lhe 9 aerogramas. em Janeiro <strong>de</strong> 1973, ALA<br />
vai fazer exame <strong>de</strong> internato a Luanda e regressa sozinho à Marimba. Até ao regresso<br />
da mulher e filha à Marimba, entre 16 e 30 <strong>de</strong> Janeiro, escreve 6 aerogramas. A família<br />
manteve-se na Marimba até Março <strong>de</strong>sse ano, altura em que a comissão <strong>de</strong> ALA acabou.<br />
esta «contabilida<strong>de</strong>» diz apenas respeito aos aerogramas que ALA escreveu a Maria José<br />
e que chegaram ao seu <strong>de</strong>stino. As cartas contêm referências a cartas extraviadas e a<br />
cartas escritas a outros familiares.