o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
em que línguA escreVe <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r?<br />
157<br />
<strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r. Por exemplo, a «regra» explicitada no Húmus herbertiano:<br />
«liberda<strong>de</strong>s, liberda<strong>de</strong>»; ou a <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> poema enquanto «nó<br />
<strong>de</strong> energia» inseparável <strong>do</strong> «ritmo orgânico» e da «imposição rítmica<br />
<strong>do</strong> corpo», apresentada em «(feixe <strong>de</strong> energia)» (Hel<strong>de</strong>r, 1995: 138);<br />
ou a ascensão da voz no «corpo aberto com o centro na terra», tal<br />
como se apresenta em «(vox)» (116); ou ainda a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que entre o<br />
poema e o mun<strong>do</strong> existe uma «continuida<strong>de</strong> energética, vital», «uma<br />
energia rítmica e sem quebra» (Hel<strong>de</strong>r, 1995: 142) cujo fulcro é o<br />
corpo enquanto <strong>do</strong>bra cantante da matéria. Como já referi, A faca não<br />
corta o fogo caracteriza-se por uma forte organicida<strong>de</strong>, e se atrás lhe<br />
chamei livro, talvez <strong>de</strong>va agora acrescentar que se trata <strong>de</strong> um livro-<br />
-poema, no qual os textos se enca<strong>de</strong>iam em sequência, completan<strong>do</strong>-se,<br />
complementan<strong>do</strong>-se.<br />
De resto, há, em <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r, uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Livro que evoca<br />
a conceptualização mallarmeana. O facto <strong>de</strong>, nas duas súmulas, os<br />
poemas per<strong>de</strong>rem o título e surgirem separa<strong>do</strong>s apenas por um asterisco<br />
enfatiza uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> organicida<strong>de</strong> aberta que<br />
o título ou o Poema contínuo, usa<strong>do</strong> na primeira súmula e <strong>de</strong>pois na<br />
«poesia toda» <strong>de</strong> 2004, parece reiterar. em <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r, todas as<br />
recolhas <strong>de</strong> poesia recusam (até pelas diferenças que mantêm entre si)<br />
o fechamento implica<strong>do</strong> na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> conjunto, numa perspectiva muito<br />
próxima daquela que é <strong>de</strong>fendida por Deleuze, ao afirmar: «un tout<br />
n’est pas clos, il est ouvert; et il n’a pas <strong>de</strong> parties, sauf en un sens<br />
très spécial, puisqu’il ne se divise pas sans changer <strong>de</strong> nature à chaque<br />
étape <strong>de</strong> la division» (Deleuze,1983: 21). Nesse senti<strong>do</strong>, o Livro herbertiano<br />
é o tu<strong>do</strong> (aberto) que nunca se <strong>de</strong>ixará confinar entre as margens<br />
<strong>de</strong> um to<strong>do</strong>.<br />
Uma gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong> A faca não corta o fogo, particularmente<br />
aqueles que ocupam o centro <strong>do</strong> livro, falam da língua,<br />
ou <strong>de</strong> «uma língua por <strong>de</strong>ntro da própria língua», falam da génese <strong>de</strong><br />
um duplo idioma (a poesia, em senti<strong>do</strong> lato, mas também esta poesia,<br />
herbertiana, única), e falam da relação ambivalente <strong>de</strong>sse duplo<br />
idioma com a língua portuguesa, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele parte. O duplo idioma<br />
(a poesia e esta poesia), a língua criada <strong>de</strong>ntro da própria língua, no<br />
senti<strong>do</strong> proustiano <strong>de</strong> aí ser uma «língua estrangeira», não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<br />
<strong>de</strong> exercer violência sobre a língua <strong>de</strong> origem:<br />
a acerba, funda língua portuguesa,<br />
língua-mãe, puta <strong>de</strong> língua, que fazer <strong>de</strong>la?<br />
escorchá-la viva, a cabra!<br />
(576)