o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
ecensões<br />
317<br />
repúdio, a mediocrida<strong>de</strong> (salazarenta) <strong>do</strong>s funcionários públicos, o que é mo<strong>do</strong><br />
indirecto <strong>de</strong> se louvar e <strong>de</strong> apregoar superiorida<strong>de</strong> moral e humana (po<strong>de</strong>-se<br />
<strong>de</strong>tectar aqui sem gran<strong>de</strong> custo uma implicação i<strong>de</strong>ológica); enfim, em «O Cavaleiro<br />
da Lua» (p. 322), a irrupção, logo a abrir o poema, <strong>de</strong>stes versos necrófilos<br />
e que dão voz a um imaginário que diríamos tipicamente gótico: «exige o meu<br />
cadáver que o vele, / quer-me a seu la<strong>do</strong>, a acompanhar-lhe o espanto, / a aconchegar-lhe<br />
o ensanguenta<strong>do</strong> manto, / a enxotar-lhe os moscões da baça pele. //» (vv. 1-4).<br />
Permitam-me que me <strong>de</strong>bruce agora com mais atenção sobre <strong>do</strong>is poemas.<br />
O primeiro leva o título bem gótico <strong>de</strong> «Anathema Sit»: «O<strong>de</strong>io-te, Poesia, bruxa<br />
fria / que me <strong>de</strong>itaste o olhar, mal que nasci, / e que me perseguiste, noite e dia, /<br />
ó bruxa fria para quem vivi. // Olha-me bem, fita-me bem, aqui / a retorcer-me em<br />
pasmos <strong>de</strong> agonia. / Maldita a hora em que me <strong>de</strong>i a ti, / ó bruxa fria! O<strong>de</strong>io-te,<br />
Poesia! // Maldigo-te, ó enganosa <strong>do</strong>s enganos, / que matan<strong>do</strong> me vais, nocturna,<br />
aos poucos!/ Maldita sejas, bruxa engana<strong>do</strong>ra! // Vai-te, Poesia, engano <strong>do</strong>s humanos,<br />
/ faze<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Cristos e <strong>de</strong> loucos! / Fora <strong>de</strong> mim, ó Poesia! Fora! //» (p. 349).<br />
O sofrimento <strong>do</strong> sujeito provém, como é fácil <strong>de</strong> perceber, da Poesia, que merece<br />
honras <strong>de</strong> maiúscula, não obstante a maldição a que o fada (ou <strong>de</strong>certo justamente<br />
pelo po<strong>de</strong>r avassala<strong>do</strong>r que <strong>de</strong>tém). e que maldição é essa? A não ser a maldição<br />
inerente à perseguição, é interessante verificar que o poema, que se alicerça em<br />
acusações sucessivas (daí uma certa abundância exclamativa), não expõe nenhum<br />
razão objectiva que justifique com clareza a revolta extrema face à poesia, que é<br />
como quem diz, face ao ser-se poeta. É <strong>de</strong>sse vazio, <strong>de</strong>sse espaço em branco, que<br />
se constrói a estrutura semântica <strong>do</strong> texto e a carga <strong>de</strong>nsa e dramática <strong>de</strong> que se<br />
reveste. Temos uma série <strong>de</strong> imprecações contra a poesia – daí a tonalida<strong>de</strong> imperativa<br />
<strong>do</strong> poema –, <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sespero absoluto, mas não temos as<br />
razões <strong>de</strong>ssa revolta e os motivos <strong>do</strong> <strong>de</strong>sespero. quer dizer, sabemos que o drama<br />
está em ser poeta, não nos sen<strong>do</strong> explanadas, no entanto, razões que fazem da<br />
poesia e <strong>do</strong> ser poeta um drama lancinante. O que temos, isso sim, é a corporificação<br />
da Poesia como uma marca (<strong>de</strong> nascença) maléfica inapagável, contra a<br />
qual o sujeito exprime uma revolta abrasiva e intransigente. A Poesia é, pois, uma<br />
«bruxa fria», que persegue incessantemente o sujeito («noite e dia»), <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascimento,<br />
impon<strong>do</strong>-lhe, para seu gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero, uma fatalida<strong>de</strong> in<strong>conto</strong>rnável.<br />
e a presença <strong>de</strong>ssa maldição é contínua, vale dizer, não temos aqui a tradicional<br />
concepção <strong>de</strong> poesia como inspiração momentânea e fugaz que, por vezes, visita o<br />
poeta. Antes uma omnipresença irredutível, em que a Poesia se apossa <strong>do</strong> sujeito<br />
– presume-se que em todas as suas dimensões – e não mais o larga. Aliás, a Poesia,<br />
estigma maléfico, ten<strong>de</strong> precisamente a aparentar-se a uma possessão que <strong>de</strong>termina<br />
o sujeito, não tanto a ponto <strong>de</strong> lhe inibir o juízo crítico <strong>de</strong> a querer à viva<br />
força expulsar <strong>do</strong> corpo, mas que o condiciona o suficiente para o confinar ao<br />
esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> poeta maldito. Numa dicção por certo tributária <strong>do</strong> paradigma romântico,<br />
o poeta é marginal, e com o seu quê bastante evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> satânico (pelo viés<br />
<strong>de</strong> uma poesia <strong>de</strong>moníaca, ainda que não faltem versos nesta caixa <strong>de</strong> música que<br />
o aproximem à figura <strong>de</strong> Cristo, um Cristo sofre<strong>do</strong>r, claro está, que simboliza os<br />
con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s inocentes), e amaldiçoa esta sua condição; e o que parece estar aqui<br />
em causa não é tanto a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o mun<strong>do</strong> lidar com o poeta, é antes a<br />
incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> este não conseguir lidar com o mun<strong>do</strong>, ao qual aspira, não fosse