15.04.2013 Views

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

294 diAcríticA<br />

que o dizia muito no íntimo, por <strong>de</strong>scui<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixasse fugir <strong>do</strong>s lábios<br />

as palavras impróprias da sua inocência» (ibi<strong>de</strong>m). O assentimento da<br />

morgada sobreleva, <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, a simples e isenta <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong><br />

apreço que a cortesia impõe em situações congéneres <strong>de</strong>sta. A confiar<br />

na interpretação <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, motivada em especial pelo corar <strong>de</strong><br />

Mécia, a frase, responsável por um efeito <strong>de</strong> narcotização no íntimo<br />

<strong>de</strong> Baltazar (cf. ibi<strong>de</strong>m), terá escapa<strong>do</strong> <strong>do</strong> íntimo da personagem e<br />

assume, fora <strong>de</strong>sse espaço sela<strong>do</strong> que é a intimida<strong>de</strong>, o valor <strong>de</strong> uma<br />

revelação inconfessável: a que se afigura imprópria à sua inocência.<br />

2.3. A colagem da personagem às feições da mulher-anjo passa<br />

também por aquilo que mécia faz, nomeadamente pela cena em que<br />

a moça dispensa alimentos ou apenas os consome em pequena escala<br />

para espanto <strong>de</strong> D. José. Azeite, galinhas, o cheiro da toalha, etc., são<br />

tu<strong>do</strong> representações que relevam <strong>do</strong> concreto e <strong>do</strong> empírico e que se<br />

opõem à compenetração melancólica que o Marão suscita. O mesmo<br />

será afirmar que, ao contrário da serra, as iguarias <strong>de</strong>ste tipo não são<br />

<strong>de</strong> mol<strong>de</strong> a <strong>de</strong>spertar ensimesmamento romântico. Além disso, se a<br />

morgada <strong>de</strong> Ansiães mergulhasse nas galinhas, nos salpicões e no<br />

toucinho, é bem provável que o ‘mergulho’ engendrasse em Baltazar<br />

repúdio (semelhante ao que Gonçalo Malafaya ressente por Maria<br />

das Dores, em estrelas funestas, ao vê-la comer vorazmente peixe).<br />

A <strong>de</strong>slocação até à janela funciona aqui como um mo<strong>de</strong>lo que traz<br />

em si as marcas sintomáticas <strong>de</strong> uma natureza romântica. Trata-se da<br />

linguagem silenciosa <strong>de</strong> um acto <strong>de</strong> comunicação não-verbal tão<br />

<strong>de</strong>nunciativo como se surpreendêssemos a morgada a ler, <strong>de</strong>scontan<strong>do</strong><br />

o anacronismo da situação, sense and sensibility. e convém não<br />

esquecer que o acto preten<strong>de</strong> ser visto por Baltazar, o que lembra palavras<br />

<strong>de</strong> Girard, precisamente a propósito <strong>do</strong> romântico: «Le romantique<br />

ne veut pas vraiment être seul; il veut qu’on le voie choisir la<br />

solitu<strong>de</strong>» (Girard, 1976: 160).<br />

quem não fica convenci<strong>do</strong> é D. José, que, com inteira franqueza,<br />

adverte Baltazar <strong>do</strong> fingimento da morgada: «Aquilo [a prima Mécia] é<br />

cabra montezinha a valer! Ouviu contar que as damas da corte comem<br />

por onças e fingiu-se enjoada das galinhas! Lá, em casa <strong>de</strong>la, corto<br />

eu as orelhas, se a <strong>de</strong>lambida não se atirasse às frangas como gato a<br />

boches!» (sm. 43). Contu<strong>do</strong>, a esperteza certeira <strong>de</strong> D. José não chega<br />

para <strong>de</strong>siludir Baltazar. O romantismo <strong>do</strong> herói torna-o num alvo fácil<br />

da manobra da moça, e <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> tal que a admoestação <strong>de</strong> D. José

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!