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o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho

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singulAridA<strong>de</strong>s <strong>de</strong> umA moçA e nArcotizAção <strong>do</strong> Herói<br />

279<br />

1.3. A gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> em perceber a inquieta<strong>do</strong>ra Mécia está<br />

em saber enten<strong>de</strong>r a inaudita conjugação que, numa mesma psicologia,<br />

convoca <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ser tão estranhos um ao outro. Ou seja,<br />

o que leva Mécia a sofrer por uma galinha, até ao ponto <strong>de</strong> tremer e<br />

<strong>de</strong> fugir, e o que a faz aguentar sem <strong>do</strong>r, nem sequer consternação, a<br />

morte brutal <strong>do</strong> noivo, tanto mais que, sob o aspecto moral, estará<br />

involuntariamente implicada na tragédia. esta estranha conjunção,<br />

por mais pertinente que seja, não dispõe <strong>de</strong> resposta fácil e, menos<br />

ainda, conclusiva.<br />

Mas uma achega que parece fazer algum senti<strong>do</strong> pren<strong>de</strong>-se com a<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que Mécia, não obstante a maiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s seus <strong>de</strong>zoito anos,<br />

não apresenta uma maturida<strong>de</strong> consentânea com essa maiorida<strong>de</strong><br />

etária. Uma passagem <strong>do</strong> texto ten<strong>de</strong> particularmente a confirmar<br />

explicitamente esta hipótese. Refiro-me ao comentário <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r<br />

sobre o que Mécia enten<strong>de</strong> por amor: «A i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> amor, como ela a<br />

formava, era um extremo <strong>de</strong> meiguices <strong>de</strong>sconhecidas. [...] Fora preciso<br />

amá-la brincan<strong>do</strong>; ensinar-se-lhe o cre<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor, como às crianças<br />

se ensina, em tom <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, o cre<strong>do</strong> da igreja.» (i<strong>de</strong>m, 91).<br />

Condizente com esta equiparação <strong>de</strong> Mécia a uma criança está o extremoso<br />

pai que, à semelhança <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, variadas vezes, a chama<br />

menina (o reitor <strong>de</strong> Selores diria morgadinha) e que ten<strong>de</strong> a tratá-la<br />

nessa proporção, ro<strong>de</strong>an<strong>do</strong>-a <strong>de</strong> atenção e achan<strong>do</strong>-se sempre disponível<br />

para lhe acatar os <strong>de</strong>sejos. De resto, a própria resolução da ida às<br />

festas <strong>de</strong> Braga partiu, ao que diz Lopo <strong>de</strong> Sampaio, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo da<br />

filha, prontamente atendi<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>svela<strong>do</strong> pai (cf. i<strong>de</strong>m, 25).<br />

Ora revela<strong>do</strong>r da pouca maturida<strong>de</strong> da protagonista estaria precisamente<br />

o seu pavor diante <strong>de</strong> animais em apuros, pavor que se alastra<br />

a tu<strong>do</strong> que soe a perigo e que, nessa medida, parece ajustar-se a uma<br />

feição paranóica. Vai além da uma mera reacção sensível. Po<strong>de</strong>mos<br />

vê-lo como constitutivo da criancice <strong>de</strong> Mécia. Com efeito, na perspectiva<br />

<strong>de</strong> uma criança tais me<strong>do</strong>s são comuns e não causam dúvida<br />

a ninguém. A violência imediata da morte <strong>de</strong> uma galinha ou a <strong>de</strong>scrição<br />

<strong>de</strong> um episódio tauromáquico facilmente a impressionam e atemo-<br />

rizam. Tratan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> uma <strong>do</strong>nzela <strong>de</strong> <strong>de</strong>zoito anos, o caso muda obviamente<br />

<strong>de</strong> figura e po<strong>de</strong> explicar-se porque Mécia ainda não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

ser criança. O me<strong>do</strong> irreflecti<strong>do</strong>, que Mécia algo habilmente faz passar<br />

por uma questão <strong>de</strong> coração («que corações!», exclama, antes <strong>de</strong> dizer<br />

o que lhe suce<strong>de</strong> sempre que matam galináceos), impõe-se como mais<br />

um traço, e assaz revela<strong>do</strong>r, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> afirmar a falta <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong><br />

da personagem e a presunção da proximida<strong>de</strong> da sua maneira <strong>de</strong>

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