o conto insolúvel de Herberto Helder - Universidade do Minho
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122 diAcríticA<br />
impõe um <strong>de</strong>sacerto que tem na obra seu espaço acerta<strong>do</strong>, ou melhor,<br />
concerta<strong>do</strong>. O senti<strong>do</strong> que quero para a última palavra da sentença<br />
anterior é o camoniano, já que os «termos em si tão concerta<strong>do</strong>s»<br />
(i<strong>de</strong>m, 117) da fala erótica (uso sem susto esse termo pois me estou<br />
referin<strong>do</strong> a Camões, e justo num texto sobre <strong>Herberto</strong> Hel<strong>de</strong>r) disparam-se<br />
rumo a duas <strong>de</strong>rivas: «aqui falta saber, engenho e arte» (ibi<strong>de</strong>m)<br />
mas no mesmo «aqui», «Senhora» (ibi<strong>de</strong>m), sobeja a relação, e com a<br />
«Senhora». Assim, um muro (fingi<strong>do</strong>, talvez, mas um muro) e uma<br />
porta. Assim, é <strong>de</strong>ntro da língua que tu<strong>do</strong> acontece, mas, se os corpos<br />
da «Senhora» e da «catorzinha», cada um em seu lugar, não somem da<br />
relação, é preciso que a língua seja tratada como corpo erótico, mais,<br />
sexualiza<strong>do</strong>.<br />
Necessário é então superar o muro e abrir a porta, inventan<strong>do</strong><br />
surpresas na língua, tais como «trav», «raparigo» etc. e, no poema<br />
sobre o qual mais diretamente me <strong>de</strong>bruço, «tècnicamente», «tôpo»,<br />
«<strong>de</strong>fêsa» etc. O <strong>Herberto</strong> <strong>de</strong>sse livro não se basta em apenas <strong>de</strong>nsificar<br />
a língua, vai além. Começo por segurar <strong>do</strong>is versos precisamente<br />
<strong>do</strong> poema que se inaugura com o título <strong>do</strong> livro, «a faca não corta<br />
o fogo» (Hel<strong>de</strong>r, 2009: 572): «e quem não queria uma língua <strong>de</strong>ntro<br />
da própria língua? / eu sim queria,» (ibi<strong>de</strong>m) e o amor pela «beleza» da<br />
menina, que é, por sua vez, amor pela beleza enquanto absoluto real e<br />
no tempo («tenho tão pouco tempo»), dirige-se à língua para amá-la.<br />
Como? Assim: «a acerba, funda língua portuguesa, / língua-mãe, puta<br />
<strong>de</strong> língua, que fazer <strong>de</strong>la? / escorchá-la viva, a cabra!» (i<strong>de</strong>m, 576).<br />
Mais: «que se foda a língua, esta ou outra, / porque» (ibi<strong>de</strong>m) esse<br />
projeto linguístico-amoroso é, e tem <strong>de</strong> ser, físico.<br />
Portanto, «que se foda a língua» não se trata <strong>de</strong> um xingamento,<br />
mas <strong>de</strong> um sábio e instrucional uso <strong>do</strong> subjuntivo. Fodê-la: acentuar<br />
como se numa indicação <strong>de</strong> leitura em voz alta, a<strong>do</strong>tar diversos termos<br />
<strong>de</strong> outros idiomas («la poésie comme l’amour» (i<strong>de</strong>m, 590), «beltà<br />
beauty beauté» (i<strong>de</strong>m, p. 608), «eli, eli, lamma sabacthani» (i<strong>de</strong>m,<br />
582), e outros exemplos, intertextuais ou não, seriam possíveis), pontuar<br />
algumas interrogações como se faz, por exemplo, em castelhano,<br />
usar um tom que lembra certa variante <strong>do</strong> português brasileiro («não<br />
some não, que eu lhe procuro, e lhe boto / faca à garganta» (i<strong>de</strong>m,<br />
544)) etc. Desse mo<strong>do</strong>, «quem não queria uma língua <strong>de</strong>ntro da própria<br />
língua?», e são diversas as línguas, inclusive a da «aparecida».<br />
Beijo na boca, <strong>de</strong> língua, e apenas <strong>de</strong>ntro da língua poética.<br />
Língua poética, insisto, como repositório da «beleza», a, por<br />
«<strong>de</strong>sencontrada», «abusiva», a que «avança terrível como um exército»,