Baixar - Proppi - UFF
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Se, por um lado, essa ‘entrada’ no campo via mediação acadêmica funcionou como<br />
um eficaz facilitador, permitindo acesso à comunidade, estabelecimento de relações pessoais,<br />
fazendo com que minha presença ganhasse posição e significado no quadro de referências da<br />
comunidade – estudante universitário pesquisando a comunidade –, isto não nos permite esquecer,<br />
por outro lado, que sentido se pode dar à noção de ‘entrada’ na comunidade. Paulo<br />
Pinto (Pinto 2010c) alerta para um aspecto geralmente negligenciado nas reflexões produzidas<br />
sobre a pesquisa etnográfica, o fato de que a ‘entrada no campo’ é sempre relacional, contextualizada,<br />
e que estar ‘dentro’ da comunidade significa algo muito particular. Não há visão<br />
panóptica em uma pesquisa etnográfica, precisamente porque não há visão panóptica na vida<br />
social. Estar dentro de uma comunidade significa estar inserido em uma rede de relações que<br />
permitem acesso a diversas instâncias, na mesma medida em que podem proibir acesso a outras.<br />
Tendo ‘entrado’ na comunidade muçulmana sunita carioca pelos canais abertos pelo professor<br />
Paulo Pinto, eu estava igualmente impossibilitado de abrir as mesmas portas que possivelmente<br />
foram fechadas a ele. Mas não só isso.<br />
Aparte o fato da mediação, minha própria persona já impunha limites que desmentem<br />
a concepção panóptica da etnografia. Enquanto homem, não tive livre acesso ao universo feminino.<br />
Embora a mesquita conte com membros de ambos os sexos, não sendo de modo algum<br />
um espaço exclusivamente masculino, a presença feminina nas atividades da mesquita é<br />
indubitavelmente menor. Mas minha virtual impossibilidade de pesquisar livremente junto ao<br />
universo feminino independe de quantidades, vinculando-se qualitativamente às relações de<br />
gênero no universo muçulmano, não só carioca, mas de um modo mais geral nesse caso. As<br />
relações homem-mulher na etiqueta religiosa muçulmana são de evitação, pudor, distância,<br />
regidas pela lógica do ‘respeito’ e ‘humildade’ com variações de acordo com os diversos contextos<br />
culturais nos quais o Islã se faz presente 8 . Assim, não me sentia proibido em cumprimentar<br />
com um salam as mulheres com quem cruzava na mesquita, mas jamais me senti à<br />
vontade para iniciar uma conversa mais detalhada. De um modo geral, a própria configuração<br />
das atividades na mesquita facilita a separação sexual, seja na própria segregação espacial<br />
para a oração; na pouca participação feminina nas atividades voltadas para fora da comunidade,<br />
como as aulas de árabe e religião, por exemplo; seja ainda na participação das atividades<br />
de preparação do iftar, a quebra diária do jejum no Ramadan, onde a presença feminina era<br />
muito reduzida em relação a dos homens.<br />
8 Ao contrário do que supõe a vulgata orientalista especialmente na mídia, que atribui certa homogeneidade às<br />
mais diversas sociedades de maioria muçulmana, permitindo, por exemplo, a sobreposição de religião, nacionalidade<br />
e etnia ao se referir ao ‘problema’ da ‘imposição’ do véu às mulheres nos ‘países árabes’, sem que<br />
sejam mencionados quais países e os diversos contextos e processos complexos que envolvem o tema.<br />
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