Baixar - Proppi - UFF
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Mas o que me chamava a atenção era o fato de ele se apresentar atualmente com uma nova<br />
configuração. É possível organizar uma sequência histórica do debate da seguinte forma: no<br />
séc. XV, com a Revolução Científica, testemunhamos o conflito entre um discurso religioso<br />
detendo poder de verdade consolidado pela filosofia escolástica medieval, além da força do<br />
domínio político-institucional da Igreja Católica. Assim, as perseguições às teses de Copérnico,<br />
a Galileu Galilei, a queima de livros, o Index 15 ; nos séculos XVIII e XIX, com a consolidação<br />
política e epistemológica do discurso científico na sociedade europeia – constituída<br />
propriamente em conjunto com essa ciência (Latour 1994) – o eixo sofre uma torção, de modo<br />
que a ciência – entendida como um conhecimento racional, rigoroso, objetivamente fundamentado<br />
na natureza 16 – passa a dispor de primazia sobre a força da verdade. Em princípio,<br />
sua força no valor de verdade funda-se na realidade e natureza das coisas, e não numa força<br />
política institucional, como no caso do domínio católico – um domínio político baseado em<br />
um conjunto de afirmações tautológicas e inferências circulares.<br />
A ciência moderna surge em um contexto em que o pensamento religioso – uma religião<br />
em particular – é dominante, portanto capaz de modular. Na medida em que a ciência se<br />
desenvolve e se afirma como legítima instância produtora da verdade, é capaz de subverter o<br />
domínio político do pensamento religioso, chegando mesmo ao ponto em que seu domínio e<br />
progresso técnico é de tal ordem que parece plausível postular um futuro desaparecimento do<br />
pensamento religioso, da religião como instituição social. São as teorias sobre o desencantamento<br />
do mundo, o retraimento da religião para a esfera privada (Weber 1944; Freud<br />
1996; Berger 1973; 1985; Pierucci 2005; 2006).<br />
O que me parece interessante a respeito desse quadro é o fato de que, nos dias de hoje,<br />
quando o debate a respeito do desaparecimento da religião saiu de cena, talvez exatamente<br />
porque se tornou evidente que ela não desapareceria, a ciência retorna com pretensões maiores<br />
do que simplesmente instalar o domínio da técnica sobre a natureza. O debate “ciência x<br />
religião” na atualidade não passa tanto pela questão de saber quem poderá falar legitimamente<br />
sobre o real, uma vez que o domínio da ciência é sólido, mas pelo papel que a ciência pode<br />
desempenhar enquanto uma nova metafísica do ser – a ciência pode vir a desempenhar, ou<br />
15 O caso do moleiro Menocchio, trabalhado brilhantemente por Carlo Ginzburg (Ginzburg 2006), preso e<br />
processado diversas vezes, até ser torturado e morto pelo Tribunal do Santo Ofício Italiano é um belo documento<br />
do controle da Igreja Católica sobre a própria interpretação e pensamento religioso.<br />
16 Na definição de Japiassú e Marcondes (1996:43): “Mais modernamente, é a modalidade de saber constituída<br />
por um conjunto de aquisições intelectuais que tem por finalidade propor uma explicação racional e objetiva da<br />
realidade. Mais precisamente ainda: é a forma de conhecimento que não somente pretende apropriar-se do real<br />
para explicá-lo de modo racional e objetivo, mas procura estabelecer entre os fenômenos observados relações<br />
universais e necessárias, o que autoriza a previsão de resultados (efeitos) cujas causas podem ser detectadas<br />
mediante procedimentos de controle experimental.”<br />
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