Tratado de Ética - Instituto de Humanidades
Tratado de Ética - Instituto de Humanidades
Tratado de Ética - Instituto de Humanidades
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Esse movimento da consciência não a livra entretanto das inclinações. Incumbe<br />
superá-las a fim <strong>de</strong> que possa efetivar-se a escolha do puro <strong>de</strong>ver. Assim, além do eu-moral há<br />
um outro eu, além da liberda<strong>de</strong> (lei moral) há a natureza.<br />
Todo o esforço da visão moral vai consistir em separar completamente a liberda<strong>de</strong><br />
da natureza, <strong>de</strong> sorte a tornar a primeira in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da segunda. Essa separação, entretanto,<br />
só faz liberá-las uma da outra. Assim, segundo Hegel, "quanto mais livre se toma a<br />
consciência-<strong>de</strong>-si, tanto mais livre se torna também o objeto negativo <strong>de</strong> sua consciência". O<br />
cumprimento do <strong>de</strong>ver nada tem a ver com a maneira pela qual os fenômenos se acham<br />
relacionados na natureza. Há, portanto, indiferença mútua.<br />
A indiferença da liberda<strong>de</strong> em relação à natureza não é entretanto absoluta. A<br />
consciência-<strong>de</strong>-si que participa das duas realida<strong>de</strong>s consi<strong>de</strong>ra a moralida<strong>de</strong> como essencial e a<br />
natureza como inessencial. Ao lado da indiferença mútua, verifica-se igualmente a<br />
subordinação da natureza à moralida<strong>de</strong>. E aqui se instaura a contradição que vai obrigar a<br />
visão moral do mundo a abandonar sua quietu<strong>de</strong> e placi<strong>de</strong>z para mover-se no sentido <strong>de</strong><br />
superá-la.<br />
Hegel abandona a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e passa à Crítica<br />
da Razão Prática, invocando os postulados presentes a esta última. Mas apóia-se numa<br />
interpretação livre, segundo a qual o primeiro postulado correspon<strong>de</strong>ria à harmonia entre a<br />
felicida<strong>de</strong> e a moralida<strong>de</strong>; o segundo ao progresso infinito da consciência-<strong>de</strong>-si moral pela<br />
harmonia conquistada entre sua natureza e a moralida<strong>de</strong>; e o terceiro, pela crença num Santo<br />
legislador do mundo no qual os dois termos acham-se plenamente i<strong>de</strong>ntificados. Na verda<strong>de</strong>,<br />
os postulados <strong>de</strong> Kant não têm tal formulação nem preten<strong>de</strong>m superar a contradição naturezacultura,<br />
que, como se sabe, buscou em outra parte <strong>de</strong> sua obra, a Crítica do Juízo, justamente<br />
<strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> "terceira crítica". (6)<br />
Vejamos – e para seguir a trajetória hegeliana até o fim –, resumidamente, qual a<br />
experiência realizada pela consciência moral nas três etapas estabelecidas por Hegel e os<br />
resultados a que chega finalmente.<br />
O conhecimento da lei moral não po<strong>de</strong> satisfazer à consciência que aspira também<br />
vê-la realizada. Sua ação <strong>de</strong>ve pautar-se no sentido <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar o mundo a essa realida<strong>de</strong>.<br />
Contudo, a vida social não é certamente o lugar da moralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vendo a consciência<br />
experimentar a amargura da <strong>de</strong>cepção. A felicida<strong>de</strong> é episódica e momentânea. O mundo não<br />
parece ter sido feito para os bons. O bem só po<strong>de</strong> consistir num objetivo final <strong>de</strong> efetivação<br />
aleatória.<br />
A consciência ver-se-á na contingência <strong>de</strong> impulsionar o homem a voltar-se sobre<br />
si mesmo. É instado a travar combate sem tréguas contra a sua natureza para a<strong>de</strong>quá-la à lei<br />
do puro <strong>de</strong>ver. Essa unida<strong>de</strong> buscada somente resultará do progresso a ser tentado<br />
in<strong>de</strong>finidamente. No fundo, trata-se <strong>de</strong> uma realização que jamais será alcançada, consistindo<br />
<strong>de</strong> fato num puro impulso porquanto a perfeição é <strong>de</strong> fato inacessível.<br />
Em suma, voltando-se seja para o mundo seja para o homem, a consciência nada<br />
consegue além <strong>de</strong> simples postulados, o que imporá os passos subseqüentes.<br />
(6) No curso da exposição teremos oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> examinar especificamente a questão dos postulados da razão<br />
prática em Kant, como os enten<strong>de</strong> e que lugar ocupam no conjunto <strong>de</strong> sua obra.<br />
128