Tratado de Ética - Instituto de Humanidades
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ira divina. O terremoto que atingiu Londres cm 1692 e as gran<strong>de</strong>s tempesta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> 1703 eram<br />
consi<strong>de</strong>rados como expressões da cólera Deus.<br />
As primeiras manifestações <strong>de</strong> Man<strong>de</strong>ville dão-se precisamente para contestar<br />
essas crenças. Começam em 1704 com a publicação <strong>de</strong> uma coletânea <strong>de</strong> fábulas e<br />
prosseguem nos anos subseqüentes até a publicação, em 1714, da primeira versão or<strong>de</strong>nada <strong>de</strong><br />
sua obra básica, A fábula das abelhas. Consi<strong>de</strong>ra-se, contudo, que seus pontos <strong>de</strong> vista<br />
ganhariam feição mais acabada na medida em que se dispõe a criticar as idéias <strong>de</strong><br />
Shafsterbury, razão pela qual cumpre-nos consi<strong>de</strong>rá-las previamente.<br />
Anthony Ashley Cooper, 3º con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Shafsterbury (1671/1713), era filho <strong>de</strong> lord<br />
Shafsterbury, o famoso lí<strong>de</strong>r liberal com quem trabalhou Locke. Publicou diversos estudos<br />
<strong>de</strong>dicados à moral, a começar <strong>de</strong> An Enquiry concerning Virtue or Merit (1699), e <strong>de</strong>pois<br />
reuniu-os no livro Characteristics of Men, Manners, Opinions, Times (1711), sucessivamente<br />
reeditado. Em sua obra <strong>de</strong> moralista, não visou diretamente a Man<strong>de</strong>ville. Seu propósito era<br />
encontrar uma posição mediana entre dois grupos extremados. De um lado, os pensadores<br />
religiosos ortodoxos que, tomando à expulsão do paraíso como paradigma, consi<strong>de</strong>ravam que<br />
o principal estímulo para as ações virtuosas dos homens era precisamente a lembrança<br />
daquele evento e da punição representada pelo inferno. De outro, pensadores como Hobbes<br />
que <strong>de</strong>preciavam a natureza humana argumentando que o único móvel da ação era o interesse<br />
próprio. Para contrapor-se a ambos os grupos empreen<strong>de</strong>rá a <strong>de</strong>fesa da natureza humana.<br />
A tese primordial <strong>de</strong> Shafsterbury consiste na afirmativa <strong>de</strong> que os homens não<br />
são um conjunto <strong>de</strong> átomos <strong>de</strong>sconectados mas, como todas as coisas, estão or<strong>de</strong>nados para o<br />
melhor, por um <strong>de</strong>sígnio da providência, necessariamente bom e permanente. Exalta, na<br />
natureza, a admirável simplicida<strong>de</strong> da or<strong>de</strong>m, razão pela qual contrapõe-se às doutrinas<br />
religiosas que admitem o milagre. É pois francamente otimista sua visão tanto da natureza em<br />
geral como da natureza humana em particular.<br />
De modo coerente com esse princípio geral, Shafsterbury encara <strong>de</strong> maneira<br />
positiva as paixões humanas. Subdivi<strong>de</strong>-as em três gran<strong>de</strong>s grupos: I) as afeições que visam<br />
nosso interesse próprio e que não são <strong>de</strong> modo algum <strong>de</strong>sprezíveis; II) as afeições que visam o<br />
interesse geral; e, III) as afeições que não têm em vista qualquer interesse, como a cruelda<strong>de</strong> e<br />
a malícia, que são sempre más e que <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> "não-naturais". Em oposição à opinião mais<br />
difundida, afirma que algumas afeições po<strong>de</strong>m naturalmente conduzir o indivíduo a buscar o<br />
bem público, sem levar em conta seu próprio bem-estar e na ausência <strong>de</strong> sentimentos<br />
religiosos prévios. Supunha também que não havia necessariamente conflito entre as afeições<br />
voltadas para o interesse público e aquelas voltadas para o interesse próprio. A seu ver, as<br />
afeições públicas proporcionam gran<strong>de</strong>s satisfações e, socialmente, as afeições privadas são<br />
necessárias ao conjunto. Aposta na harmonia e no equilíbrio, embora admita a presença <strong>de</strong><br />
circunstâncias que possam afetá-los: a compaixão exagerada po<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir seu próprio fim, do<br />
mesmo modo que uma criatura negligente e insensível aos perigos po<strong>de</strong> trazer danos ao<br />
convívio social. Segundo enten<strong>de</strong>, contudo, <strong>de</strong> tais circunstâncias não se po<strong>de</strong>ria inferir a<br />
existência <strong>de</strong> conflito latente entre o público e o privado.<br />
Supõe que a tese da natureza egoísta do homem somente se sustentaria se vivesse<br />
solitariamente. Ao invés disto, emergiu a sociabilida<strong>de</strong> natural tanto com vistas à existência<br />
material como à satisfação emocional. A<strong>de</strong>mais, o homem seria dotado <strong>de</strong> um senso moral<br />
que o compele a refletir sobre suas ações e afeições, <strong>de</strong> certa forma equiparável ao senso<br />
estético que lhe permite i<strong>de</strong>ntificar prontamente a beleza. Assim, o homem virtuoso não age<br />
propriamente com vistas ao bem público mas porque o seu senso moral distingue o certo do<br />
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