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Tratado de Ética - Instituto de Humanidades

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O numinoso não se <strong>de</strong>ve confundir, entretanto, com o "sentimento <strong>de</strong> criatura" ou<br />

<strong>de</strong> anulação perante o sagrado. Este sentimento, certamente, acompanha a vivência do<br />

numinoso. Mas é, do ponto <strong>de</strong> vista psicológico, apenas efeito da presença <strong>de</strong> um elemento<br />

transbordante e misterioso. Esse "sentimento <strong>de</strong> criatura" é o que aparece, por exemplo,<br />

quando Abrahão ousa falar com Deus acerca da sorte dos sodomitas (Gén. I, 18, 27): "Eis que<br />

me atrevo a te falar eu que sou pó e cinza". Schleiermacher analisou <strong>de</strong>talhadamente este<br />

sentimento, <strong>de</strong>nominado por ele <strong>de</strong> "absoluta <strong>de</strong>pendência". Em que pese a importância <strong>de</strong>sse<br />

sentimento na teologia bíblica (todas as passagens que, no Antigo e no Novo Testamento, se<br />

referem à anawa – pobreza <strong>de</strong> espírito, esvaziamento <strong>de</strong> si próprio, plena disponibilida<strong>de</strong> –)<br />

ou na literatura mística (o leitmotiv da pequenez nas mãos <strong>de</strong> Deus, tão em voga no<br />

pensamento <strong>de</strong> S. Teresa <strong>de</strong> Lisieux ou <strong>de</strong> Charles <strong>de</strong> Foucauld, por exemplo), não constitui,<br />

contudo, o cerne da vivência do numinosa "Mas, – pergunta Rudolf Otto – o que é e como é,<br />

objetivamente, tal como o sinto fora <strong>de</strong> mim, isso que chamamos <strong>de</strong> numinoso?"<br />

O primeiro sentimento que acompanha ao numen é o expresso pelo adjetivo<br />

tremendum. Temor não é o mesmo que medo, embora guar<strong>de</strong> alguma relação com ele. A<br />

diferença fundamental entre o sentimento do tremendo e aquilo que inspira medo, consiste em<br />

que o primeiro provém diretamente do <strong>de</strong>sconhecido, do misterioso, do “absolutamente<br />

outro”, enquanto que para o segundo po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar causas naturais. Algumas línguas<br />

possuem expressões que exprimem a<strong>de</strong>quadamente o sentimento do tremendo. Em hebraico,<br />

por exemplo, hiq'disch = santificar “santificar uma coisa no coração” significa, no sentir <strong>de</strong><br />

Rudolf Otto, "distingui-la pelo sentimento <strong>de</strong> um pavor peculiaríssimo, que se não confun<strong>de</strong><br />

com nenhuma outra classe <strong>de</strong> pavor significa valorá-la mediante a categoria do numinoso". Os<br />

gregos exprimiram esse sentimento <strong>de</strong> espanto sagrado mediante a palavra sebastós sentido<br />

que foi captado perfeitamente pelos primeiros cristãos, que consi<strong>de</strong>ravam idolatria o fato <strong>de</strong><br />

predicar essa qualida<strong>de</strong> das criaturas. Na língua inglesa, encontramos a palavra awe e a<br />

expressão he stood aghast que, no seu sentido mais profundo, remetem a um sentimento <strong>de</strong><br />

temor perante o numinoso. A expressão alemã heligen (santificar), retomou em toda sua<br />

integrida<strong>de</strong> a linguagem das Escrituras.<br />

O pavor numinoso constitui a nota característica da chamada “religião dos<br />

primitivos”; ali se apresenta como “pavor <strong>de</strong>moníaco”. Nas formas mais evoluídas da<br />

religiosida<strong>de</strong>, encontramos que esse sentimento bruto não <strong>de</strong>saparece, mas perdura em<br />

manifestações que se tornam paradoxais para os que preten<strong>de</strong>m sistematizar a vivência<br />

religiosa em formas racionais. Tal é, por exemplo, a orgé theory (cólera <strong>de</strong> Deus) no Novo<br />

Testamento ou o zelo <strong>de</strong> Jahveh, no Antigo, expresso na enérgica exclamação do salmista:<br />

“Porque consumiu-me o zelo da tua casa” (Sal. 69, 10), na qual, segundo Rudolf Otto, “(...)<br />

<strong>de</strong>svelar-se por Jahveh é um estado numinoso que comunica também a quem o sofre os traços<br />

do tremendo”. Convém salientar, aqui, o caráter antinatural <strong>de</strong>sse sentimento <strong>de</strong> terror ou <strong>de</strong><br />

pavor numinoso que revela, negativamente, a presença do absolutamente outro".<br />

O segundo sentimento, que acompanha o numen, é o expresso pelo substantivo<br />

rnajestas, majesta<strong>de</strong>. O numinoso apresenta-se, na experiência mística (que constitui o cerne e<br />

a forma mais elevada da experiência religiosa), fundamentalmente como majesta<strong>de</strong> tremenda.<br />

O conceito <strong>de</strong> majesta<strong>de</strong> indica po<strong>de</strong>r, potência, prepotência, onipotência. Para Rudolf Otto<br />

“(...) o caráter majestático po<strong>de</strong> persistir vivo ali on<strong>de</strong> o aspecto primeiro do numen, a sua<br />

inacessibilida<strong>de</strong> e a sua orgé ce<strong>de</strong> e se apaga, como só acontece na mística. A este elemento<br />

<strong>de</strong> majesta<strong>de</strong>, <strong>de</strong> prepotência absoluta, respon<strong>de</strong> como o seu correlato no sujeito, como a sua<br />

sombra e reflexo subjetivo, aquele sentimento <strong>de</strong> criatura que surge do contraste com essa<br />

potência superior, como sentimento da própria submissão, da anulação, do ser terra, cinza,<br />

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