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indígena na Amazônia. Aí eu pego uma referência do Bartolomeu de las<br />
Casas 1 em que ele fala da Amazônia. Ali, sério, focado, eu penso que vou<br />
ler só o capítulo 4 do tomo 2 sobre a Amazônia e vou fichar. Aí eu abro<br />
o livro e começa mais ou menos assim: “En enero de 1500 el delincuente<br />
Vicente Yañez Pinzon” 2 . O impacto foi grande. Por que ele chamou de<br />
delinquente? Porque o cara passa na Boca do Amazonas, convida os índios<br />
com quem manteve contato pacífico a subirem. Os índios sobem, o cara<br />
levanta a âncora e leva os índios como escravos para a Espanha. E doa<br />
inclusive pro Bispo de Sevilla, o Juan Fonseca 3 . O Las Casas vai à loucura.<br />
Eu até fiz uma “entrevista” com Las Casas. Eu li aquilo. Aí eu disse: “Fodase<br />
minha tese, eu vou ler o Las Casas”. Não tinha mais nada que ver com a<br />
tese. Mas eu tinha que ler o Las Casas e não eram só esses textos. Eu tinha<br />
que ler todo o Las Casas. Aí eu aproveitei e passei a ler o Las Casas todo.<br />
Minha tese já foi pras cucuias, mas eu fui fazendo aquilo que eu estava<br />
sentindo vontade de fazer, com tesão para fazer. Li todo o Las Casas até o<br />
ponto em que, quando voltei para o Brasil, eu publiquei uma “entrevista”<br />
com Las Casas, que foi publicada na Alemanha também, em alemão. O<br />
Porantim publicou, o Jornal Porantim 4 : eu atualizei o Las Casas com as<br />
perguntas. Por exemplo, eu dizia: “padre Las Casas, o governador [do<br />
Amazonas] Gilberto Mestrinho está dizendo que índio é preguiçoso. Na<br />
sua época, o Gonzalo Fernandes de Oviedo 5 também dizia. O que o senhor<br />
tem a comentar sobre isso?”. Então eu saí um pouco empurrado. Eu<br />
voltei, passei a dar cursos para índios, formei professores no Brasil todo.<br />
Dei cursos no Alto Solimões, no rio Negro, no Tiquiê, no Uaupés, no Acre,<br />
no sul do Brasil: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, em Minas, formando<br />
professor. De repente, eu descobri que essa formação anárquica era ótima<br />
para fazer esse trabalho. Ela me abria porque me permitia compartilhar<br />
com os índios conhecimentos que eu tivesse – Millor Fernandes que diz:<br />
a hiperespecialização só serve para manifestar a ignorância –, então<br />
você vai usando como pretexto para confessar tua ignorância. Não que<br />
a gente deixe de ser ignorante quando fica meio anárquico assim. Mas<br />
eu saí procurando aquilo que me interessava e que eu achava que podia<br />
interessar para os índios. Aí trabalhar com questões de linguística, de<br />
história, de literatura, enfim abrir um pouco o leque para a antropologia.<br />
1. Bartolomeu de Las Casas (1474-1566) foi<br />
frade dominicano espanhol e cronista.<br />
2. Navegador e explorador espanhol. Viveu de<br />
1462 a 1514.<br />
3. Juan Rodríguez de Fonseca (1451-1524)<br />
foi bispo espanhol de Badajoz, de Cordoba,<br />
Palencia e Burgos, além de arcebismo de<br />
Rossano, cidade italiana então sob domínio<br />
da monarquia espanhola.<br />
4. O jornal Porantim é editado e publicado<br />
pelo Conselho Indigenista Missionário.<br />
5. Gonzalo Fernandes de Oviedo (1478-1557)<br />
foi militar, administrador colonial e escritor<br />
espanhol.<br />
173 • Revista MUSAS • 2016 • Nº 7