guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
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102 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
literatura. Mesmo os tipos inci<strong>de</strong>ntais, como o alemão Vulpes, Seu Rabão, as<br />
damas da al<strong>de</strong>ia, o homem amedrontado no meio do caminho, o leproso, têm,<br />
todos eles, uma força <strong>de</strong> traços que daria para que dali fossem extraídos outros<br />
romances. Os encontros e <strong>de</strong>sencontros entre os personagens apresentam um<br />
tom <strong>de</strong> flagrante macheza, <strong>de</strong>ssa masculinida<strong>de</strong> inerente às coisas primitivas. O<br />
passeio <strong>de</strong>le na canoa <strong>de</strong> Riobaldo com o menino, o julgamento <strong>de</strong> Zé Bebelo,<br />
o ataque à fazenda, o primeiro. O contato com os catrumanos, o pacto com o<br />
diabo, todas as páginas seguintes ao momento em que Riobaldo assume o<br />
comando dos jagunços, a parada na fazenda <strong>de</strong> Josafá Ornelas, a luta contra<br />
Ricardão e, acima <strong>de</strong> tudo, a batalha final contra Hermógenes, com a revelação<br />
do verda<strong>de</strong>iro Diadorim, são trechos da mais alta literatura, numa narrativa que<br />
põe o máximo <strong>de</strong> acontecimentos num mínimo <strong>de</strong> palavras.<br />
Outro lado raro do livro é a linguagem. Temos, enfim, um escritor <strong>de</strong><br />
linguagem absolutamente pessoal que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa pessoalida<strong>de</strong>, concentra a<br />
fala <strong>de</strong> uma região. Po<strong>de</strong>-se imaginar o trabalho <strong>de</strong> requinte <strong>de</strong> Guimarães<br />
Rosa para escrever como o fez. Tudo o que a gente do interior, daquele<br />
interior do romance, é capaz <strong>de</strong> dizer, em frases típicas, em poucos momentos<br />
<strong>de</strong> uma vida inteira, o romancista colocou numa narrativa ininterrupta <strong>de</strong><br />
quase seiscentas páginas. O importante, no caso, é saber, <strong>de</strong> um lado, se a<br />
linguagem é a<strong>de</strong>quada ao romance e, do outro, se atinge largo plano literário.<br />
Quanto, ao primeiro, po<strong>de</strong>mos dizer, a narrativa falada <strong>de</strong> Guimarães Rosa, e<br />
sua corrente interna <strong>de</strong> significados, são inseparáveis. As palavras, e a forma<br />
como são usadas, não constituem, ai, mero recurso externo. A ligação entre o<br />
conteúdo do relato e sua exteriorização vem <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, <strong>de</strong> uma fase anterior à<br />
sua fixação formal, tornando-os <strong>de</strong> tal modo inconsúteis, que a história,<br />
contada como o foi, não o po<strong>de</strong>ria ter sido <strong>de</strong> outra maneira. Quanto ao<br />
segundo, nunca atingiu, a língua portuguesa falada no Brasil, nível <strong>de</strong> tanta<br />
beleza. Há partes do romance que, <strong>de</strong> tão espantosas, obrigam o leitor a se<br />
<strong>de</strong>ter um pouco, para se convencer <strong>de</strong> que não se enganou com o inesperado<br />
da imagem ou da expressão.<br />
Os brasileirismos <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas parecem confirmar as<br />
palavras <strong>de</strong> Rui Barbosa em sua Réplica, <strong>de</strong> que as inovações <strong>de</strong> uma fala<br />
nacional nada mais são às vezes do que, “formas clássicas há muito<br />
envelhecidas e extintas”. Não cremos que se tenha, até agora, comparado o<br />
estilo <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Sertão: Veredas com o português antigo. Pois vamos fazê-lo,<br />
e escolhendo, para essa comparação, o primeiro documento <strong>de</strong> nossa História: a<br />
carta <strong>de</strong> Pêro Vaz <strong>de</strong> Caminha. Vejamos algo da sintaxe <strong>de</strong> Guimarães Rosa<br />
neste trecho da carta: