guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 83<br />
<strong>de</strong>le, as terras ali não eram <strong>de</strong>le, o trabalho era <strong>de</strong>mais, e só tinha prejuízo<br />
sempre, acabava não po<strong>de</strong>ndo nem tirar para sustento <strong>de</strong> comida da família.<br />
Não tinha posse nem para retelhar a casa velha, estragada por mão <strong>de</strong>sses<br />
ventos e chuvas, nem recurso para mandar fazer uma boa cerca <strong>de</strong> réguas, era<br />
só cerca <strong>de</strong> achas e paus pontudos, perigosa para a criação. Que não podia<br />
arranjar um garrote com algum bom sangue casteado, era só contentar com o<br />
Rio-Negro, touro do <strong>de</strong>mônio, sem raça nenhuma quase. Em, tanto nem<br />
conseguia remediar com qualquer zebu ordinário, touro cancréje, que é gado<br />
bravo, miúdo ruim leiteiro, <strong>de</strong> chifres gran<strong>de</strong>s, mas sempre é zebu mesmo, cor<br />
queimada, parecendo com o guzerate.<br />
E Miguilim acrescenta esta memória dura: “Dava vergonha no coração<br />
da gente, o que o pai assim falava”.<br />
Da relação tormentosa entre o pai e a mãe, Miguilim tinha percepções,<br />
entrevisões, vislumbres; e recebia informações da parte do irmãozinho Dito,<br />
bem mais enxergador e perspicaz do que ele. “– Pai está brigando com Mãe.<br />
Está xingando ofensa, muito, muito. Estou com medo, ele queira dar em<br />
Mamãe...” E Dito completou a informação: “– Eu acho, Pai não quer que Mãe<br />
converse mais nunca com o tio Terêz... Mãe está soluçando em pranto, <strong>de</strong>mais<br />
da conta”. Um dia, Miguilim viu a Vovó Izidra mandar tio Terêz embora da<br />
casa e advertir que era por causa daquela espécie <strong>de</strong> coisas que “há questão <strong>de</strong><br />
brigas e mortes, <strong>de</strong>smanchando com as famílias”. Outro dia, Miguilim ouviu o<br />
vaqueiro Luisaltino comentar com Mãe que era um erro pai casar filha com<br />
quem ela não quer; ele aludia ao casamento <strong>de</strong>la com o pai <strong>de</strong> Miguilim.<br />
Terminou acontecendo que tio Terêz saiu da casa e foi morar em outro lugar,<br />
no Tabuleiro-Branco; Dito, que soubera do fato por fala do vaqueiro Saluz, foi<br />
quem contou a Miguilim.<br />
Miguilim captava em fragmentos a realida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>senrolava em<br />
redor <strong>de</strong>le. Realida<strong>de</strong> muitas vezes dura, conflituosa, bruta mesmo. Ele e as<br />
<strong>de</strong>mais crianças percebiam, entreviam, sentiam, captavam notavam, viam a<br />
realida<strong>de</strong> entretecida <strong>de</strong> problemas entre as pessoas.<br />
Miguilim sofria com o que via e sabia. Lento é o seu processo <strong>de</strong> amadurecimento<br />
e autolibertação. Nesse processo, interferem e colaboram com o<br />
passar do tempo três acontecimentos que muito o marcaram: a morte do irmão<br />
Dito, a ruptura moral com o pai que tanto o rejeitava, a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa.<br />
A morte <strong>de</strong> Dito foi um abalo em sua sensibilida<strong>de</strong>. Logo <strong>de</strong>pois ele compreen<strong>de</strong>u<br />
que <strong>de</strong>via ir embora daquela casa.<br />
Um acaso o ajudou a sair: apareceu um dia na fazenda um médico <strong>de</strong><br />
Curvelo, doutor José Lourenço, que logo ao chegar lhe <strong>de</strong>scobriu a miopia. Os