guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
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A inquietante estranheza em A Terceira Margem do Rio ___________________________ Marco Aurélio Baggio 67<br />
pleno movimento das águas roladoras. O pai cria um <strong>de</strong>lírio fluvial, a um só<br />
tempo estático – em permanência parada – e extático – encantado, suspenso por<br />
sobre si e por sobre o mundo sensível, por efeito <strong>de</strong> uma convicção do temor<br />
reverente e arrebatador do <strong>de</strong>stino que é a espera da própria morte. O pai<br />
maravilhou-se com aquilo – a morte – que sempre, todos nós, arredamos <strong>de</strong><br />
nós, o mais possível. A morte para nós, p<strong>rosa</strong>icos barranqueiros, é a encarnação,<br />
a entronização do mal em escala maior. A morte é o maior mal que, um<br />
dia, irá nos engolfar.<br />
“Mire veja: o que é ruim, <strong>de</strong>ntro da gente a gente perverte sempre por<br />
arredar mais <strong>de</strong> si. Para isso é que o muito se fala?”.<br />
O pai encantou-se com seu <strong>de</strong>stino – a morte. Foi cumpri-lo em vida. Aí,<br />
o insólito, o inusitado, a estranheza. O inquietante para todos nós.<br />
Para nós, os ripuários, aqueles que vivem vagabun<strong>de</strong>antes, ora numa ora<br />
noutra margem do rio, a atitu<strong>de</strong> do pai causa uma Unheimlich - uma inquietante<br />
estranheza.<br />
O feito do pai tem por mérito o ter sido feito. Seu motivo, seu propósito é<br />
postar-se na contramão da cultura. Ele involuiu, regrediu, em um ousado<br />
<strong>de</strong>smanche do mundo da cultura. Cria um escandaloso possível. Provoca um<br />
brutal choque com o p<strong>rosa</strong>ico bem-posto. Insere-se em isolamento evi<strong>de</strong>nte, no<br />
entanto, pública e explícitamente. A um só tempo, visível e inacessível. O pai<br />
pioneiro, encantado e obstinado, assume a travessia que todo homem terá que<br />
fazer – <strong>de</strong> má vonta<strong>de</strong> embora – do momento presente ao <strong>de</strong>vir, visando a<br />
cumprir sua alta tarefa, qual seja, ir <strong>de</strong> encontro com o não-ser, mergulhar na<br />
dissolução da morte. Trata-se <strong>de</strong> mera vicissitu<strong>de</strong> característica da biologia. A<br />
morte apenas, sem mistificação.<br />
Muitos sempre quiseram e querem edulcorar a morte como sendo algo<br />
metafísico, transcen<strong>de</strong>nte, e, até, metempsicótico. João Guimarães Rosa é um<br />
crente nesses tipos <strong>de</strong> transcendência. Tais concepções místicas e mistificadas<br />
são belas e altamente consoladoras.<br />
Como tudo que é i<strong>de</strong>alista e imaginário cria, sempre, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
uma estética baseada no mistério. Parece que parcela da humanida<strong>de</strong> está<br />
prestes a se cansar <strong>de</strong> acreditar em <strong>de</strong>uses. Muitos preferem creditar ao homem<br />
– ao vero homem humano – com suas vicissitu<strong>de</strong>s e suas trampolinagens os<br />
fenômenos e os fatos da vida. Do divinolente, da divinatorieda<strong>de</strong> é necessário<br />
cometer-se um salto mortale e <strong>de</strong>scair todo no plano do humano, simplesmente<br />
humano: Pirlimpsiquice.<br />
Voltemos ao centro do rio. Rio po<strong>de</strong> ser palavra mágica para conjugar<br />
futuro. Rio é via, estrada, vereda, caminho, um dos lugares possíveis <strong>de</strong> trânsito