guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
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56 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Beleza nessa novela é a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um fato notório, acontecido <strong>de</strong><br />
repente, sem que ninguém esperasse, quando cada um sentiu “no coração o<br />
estalo do silenciozinho”, causado pela falta do barulhinho, da toada do fluviol,<br />
um pequeno riacho que escorria da encosta para cair no Córrego das Pedras.<br />
Acordaram, porque era noite. As crianças correram, e até os cachorros latiram.<br />
Todos “se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não<br />
havia”. E Manuelzão, “segurando a tocha <strong>de</strong> carnaúba, o peito batendo com um<br />
estranho diferente, ele se <strong>de</strong>bruçou e esclareceu. Ainda viu o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro fiapo<br />
<strong>de</strong> água escorrer, estilar, cair <strong>de</strong>grau <strong>de</strong> altura, a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira gota, o bilbo”. O<br />
riacho soluço se estancou. “Era como se um menino sozinho tivesse morrido”.<br />
Poesia no ar da palavra rosiana.<br />
Essas estórias, havidas na novela, são muitas. O autor confirma no correr<br />
da narrativa, presenças <strong>de</strong> alto valor <strong>de</strong>ntro da relação <strong>de</strong> figurantes na festa da<br />
padroeira. O padre estrangeiro, “o frei Petroaldo, alimpado e louro, com<br />
polainas e culotes <strong>de</strong>baixo do guarda-pó, com o cálice e os paramentos nos<br />
alforjes. Ali presentes, o velho Camilo, nos adjutórios, e o Promitivo. Haja a<br />
notória personagem do Senhor do Vilamão, <strong>de</strong> barba andó, o cabelo total<br />
embranquecido, trajado <strong>de</strong> vestimenta que não se usava mais, o cavour, que se<br />
compunha com um sobretudo preto e uma sobre-capinha <strong>de</strong>scendo até o<br />
cotovelo. Ele já estava quase cego, e Manuelzão levava o velhinho para <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> casa, on<strong>de</strong> as mulheres se ajuntavam na cozinha com as caçarolas do <strong>de</strong><br />
comer. Rezava-se o terço, a pedido do festeiro; lá fora, a procissão seguia, a<br />
filha do A<strong>de</strong>lço e da Leonísia carregava a imagem da Santa. O <strong>de</strong>stino daquela<br />
imagem ninguém ainda não sabia se seria milag<strong>rosa</strong>. Depois <strong>de</strong> algum tempo,<br />
caso não surgissem milagres, ela seria trocada por outra. Os cantos eram<br />
seguidos e intermináveis. Aquele sussurro <strong>de</strong> fé, repetido assim por um coro<br />
solene e encorpado, perdurara durante toda a vida na memória religiosa <strong>de</strong><br />
Manuelzão, trazidos, presumivelmente, das lembranças infantis do autor. Ele<br />
costumava ouvi-lo em seus momentos mais fervorosos: “Ó Senhora do<br />
Socooorro...”. Alegrando o continuado da noite <strong>de</strong> vésperas da festa, e mesmo<br />
no dia <strong>de</strong>la, o prazer <strong>de</strong> todos eram as estórias, que se contavam <strong>de</strong>moradamente.<br />
O velho Camilo contou a <strong>de</strong>le, com <strong>de</strong>talhes, mas estoriadora, mesmo,<br />
era a Joana Xaviel, uma Sheraza<strong>de</strong> sertaneja.<br />
Soropita entra na novela Dão-Lalalão já um homem feliz. O autor faz<br />
questão <strong>de</strong> <strong>de</strong>linear-lhe traços <strong>de</strong>licados, sensíveis. Fala dos cuidados com a<br />
montaria, o toque sutil das esporas no flanco do animal que montava, o<br />
Caboclin. Rosa sempre gostou <strong>de</strong> provocar impacto no andamento e nos<br />
arremates <strong>de</strong> suas novelas. Talvez seja a única estória no livro com idílios e