guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
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Miguilim: uma outra epopéia <strong>de</strong> João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 81<br />
remoía. A casa era muito envelhecida, uma vez o chuvão tinha <strong>de</strong>sabado no<br />
meio do corredor, com um tapume do telhado. Trovoeira. Que os trovões a mau<br />
retumbavam”.<br />
A narração dos acontecimentos e as referências às coisas – casas <strong>de</strong><br />
morada, os eitos on<strong>de</strong> se trabalha, as roças, os morros, os matos, os cerrados, os<br />
animais domésticos, os bichos ferozes – tudo, enfim, na estória, se apresenta<br />
através da percepção e sensitivida<strong>de</strong> do menino Miguilim: coisas e acontecimentos<br />
são captações dos olhos e ouvidos <strong>de</strong> Miguilim. Todavia, a narrativa,<br />
misturando técnicas diversas, faz-se em completa liberda<strong>de</strong> em relação a<br />
rigi<strong>de</strong>zes estruturais: ora fala um narrador onisciente (“Um certo Miguilim<br />
morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito <strong>de</strong>pois<br />
da Vereda-do-Frango-d’Água e <strong>de</strong> outras veredas sem nome ou pouco conhecidas,<br />
em ponto remoto, no Mutum”), ora mergulha a narrativa em memórias<br />
diretas (“A gente podia ficar tempo, era bom, junto com o gato Sossõe”; “Tudo<br />
era bom, às tar<strong>de</strong>s a gente a cavalo, buscando vacas”); ora fala rasgadamente na<br />
primeira pessoa singular (“Ah, o pai não ralhava – ele tinha <strong>de</strong>mudado, <strong>de</strong><br />
repente, soável risonho; mesmo tudo ali no instante, às asas; o ar, essas pessoas,<br />
as coisas – leve, leve, tudo <strong>de</strong>mudava simples, sem <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, o pai gostava <strong>de</strong><br />
mamãe”).<br />
Aqui, cabe uma hipótese. Pungente é a reconstituição, rica em gran<strong>de</strong>s e<br />
em miúdas verda<strong>de</strong>s, da infância <strong>de</strong> Miguilim, que é a infância <strong>de</strong> todos nós<br />
que nascemos no sertão ou nas imediações do sertão. O autor sucumbe às vezes<br />
ao impulso forte <strong>de</strong> fazer memória direta, até mesmo mediante a primeira<br />
pessoa singular. Talvez resida nisso uma das causas por que Guimarães Rosa,<br />
conforme confessou uma vez, não podia conter lágrimas <strong>de</strong> choro profundo<br />
quando relia a narrativa <strong>de</strong> Miguilim menino.)<br />
Mutum era um lugar muito isolado. Povoado e ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> muitas espécies<br />
<strong>de</strong> animais: bois (zebus e curraleiros, brabezas) e vacas e bezerros, cavalos<br />
e burros e mulas, porcos, galos e galinhas, cabritos, papagaios, rãs, cães, gatos,<br />
ratos, gambás, patos, galinhas-d’angola, iraras, teiús (em Goiás se pronuncia<br />
tiú), tamanduás, cobras <strong>de</strong> várias espécies (principalmente jibóia e sucuri,<br />
referida como sucuriú), formigas (salientemente as cabeçudas), tatus (tatu-peva,<br />
tatu-galinha, tatu-canastra), perdizes, seriemas, emas, marrecas-caboclas,<br />
abelhas-do-reino, abelhinhas, marimbondos. Havia lá numeras espécies <strong>de</strong><br />
bichos, alguns mesmo perigosos e ferozes: onça, lobo, raposa anta, macaco,<br />
caxinguelê (serelepe), sonhim, mico-estrela, veado (<strong>de</strong> várias espécies), paca,<br />
capivara, sapo, besouro. Nas árvores e no chão e no ar do céu, apareciam<br />
constantes pássaros e bichinhos: sanhaço, sabiá-do-peito-vermelho, tico-tico,