guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
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212 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Antigo, o indivíduo não tem vida própria, pois a obra só existe enquanto<br />
encontro <strong>de</strong> dois espíritos, o do artista e o do contemplador. O artista oriental<br />
vê as Coisas <strong>de</strong> maneira a torná-las comunicáveis aos outros, segundo um<br />
padrão comum, esquecendo-se <strong>de</strong> si. Maritain continua seu raciocínio,<br />
observando que a arte oriental, embora voltada e dominada pelas Coisas,<br />
abomina o realismo, pois, como toda a arte verda<strong>de</strong>ira, transforma seu objeto<br />
em símbolo. Cabe ainda notar que, para exemplificar o Oriente, Jacques<br />
Maritain estuda as artes hindu e chinesa, enquanto Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, em O<br />
artista e o artesão, elege, para a mesma finalida<strong>de</strong>, a arte do Egito.<br />
O poeta paulista observa que a arte egípcia, cujo aspecto <strong>de</strong> impessoalida<strong>de</strong><br />
coletiva é notável, caracteriza-se por um princípio utilitário. Mais que a<br />
beleza interessa-lhe a durabilida<strong>de</strong>. O objetivo <strong>de</strong> perdurar em imagens uma<br />
vida eterna suplantava o <strong>de</strong>sejo pessoal do artista <strong>de</strong> busca da beleza por si<br />
mesma. E os egípcios, atentos a seu ofício, trataram <strong>de</strong> garantir a imortalida<strong>de</strong><br />
dos mortos mais que a própria imortalida<strong>de</strong> pela fama ou pela glória (cf.<br />
ANDRADE, op. cit.:16). Em nenhuma civilização percebe-se uma fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />
tão duradoura às formas estabelecidas, compromisso com uma expressão<br />
artística consi<strong>de</strong>rada perfeita e correspon<strong>de</strong>nte aos seus propósitos notadamente<br />
religiosos. Um dos aspectos da religião egípcia distinguia, entre os elementos<br />
componentes do ser humano, o “ka”, réplica imaterial do corpo. O “ka” po<strong>de</strong>ria<br />
sobreviver numa réplica do corpo, esculpida em material duradouro, um retrato<br />
ou uma efígie. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sobrevivência, tão ar<strong>de</strong>nte nos egípcios, dominalhes<br />
a arte sacra e a imortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina a escolha dos materiais e as<br />
proporções da obra: a forma geométrica da pirâmi<strong>de</strong> é das mais estáveis, resiste<br />
ao vento e à areia; e a pedra, como material i<strong>de</strong>al pela durabilida<strong>de</strong>, impõe-se.<br />
Certas convenções da escultura e da arquitetura nasceram do respeito às suas<br />
exigências específicas, resultando em uma nobre, austera e i<strong>de</strong>alizada estilização<br />
das formas. A arte do Antigo Egito impressiona pela regularida<strong>de</strong>, a<br />
mesma das enchentes do rio Nilo e da monotonia do <strong>de</strong>serto, impessoal e<br />
permanente.<br />
Em outras manifestações artísticas, também comandadas pelo princípio<br />
utilitário, sobretudo religioso, impera o anonimato. Na música, po<strong>de</strong>ríamos<br />
lembrar o canto gregoriano, com sua função litúrgica, submisso ao cerimonial e<br />
à inteligibilida<strong>de</strong> do texto latino. O exemplo torna-se particularmente interessante<br />
pela sua posição histórica, her<strong>de</strong>ira das teorias gregas e da salmodia<br />
hebraica, e primeira manifestação da música oci<strong>de</strong>ntal. Em Música, doce<br />
música, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> observa que, como a arte popular, o gregoriano é<br />
por essência anônimo: