guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
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Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 143<br />
inteiramente “música”. A música tinha muito a ver com sua preferência pelas<br />
“razões do coração” e uma certa nebulosida<strong>de</strong> e vaguidão; por sua necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> “vagar” sem rumo muito <strong>de</strong>finido, livremente: “Andar, andar, que um<br />
poeta/ não necessita <strong>de</strong> casa”, “sem programa,/ sem rumo/ sem nenhum itinerário”.<br />
O poeta caminha assim, “sem lenço e sem documento”, como diria mais<br />
tar<strong>de</strong> Caetano Veloso; não, porém, por anarquismo, mas porque este mundo em<br />
que ela tem <strong>de</strong> viver é um mundo instável e sem <strong>de</strong>finições. Então, em vez <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sesperar atrás <strong>de</strong> traçados que não existem, ela resolveu seguir a geografia<br />
interior da música que toca <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la. Ela po<strong>de</strong> não ter um rumo, mas tem um<br />
ritmo, tem seus radares psicológicos que a salvaguardam das rotas <strong>de</strong> colisão.<br />
No poema “Discurso” (Viagem) ela diz com toda sua experiência<br />
pessoal:<br />
Um poeta é sempre irmão do vento e da água:<br />
Deixa seu ritmo por on<strong>de</strong> passa.<br />
O poeta não é como os outros homens práticos, geométricos, que fazem<br />
mapas <strong>de</strong> estradas e ruas, <strong>de</strong> constelações e galáxias. Ele é irmão do vento, que<br />
“ninguém sabe don<strong>de</strong> vem nem para on<strong>de</strong> vai”, como disse Cristo, e que “sopra<br />
on<strong>de</strong> quer”; mas não quer arbitrariamente; é irmão da água, que faz seu<br />
caminho enquanto escorre nas enxurradas. O vento, a água e o poeta não<br />
<strong>de</strong>ixam rumos, mas <strong>de</strong>ixam ritmos. Em seguida, continua a poeta:<br />
Venho <strong>de</strong> longe e vou para longe:<br />
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho<br />
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.<br />
Para mostrar mais claramente que o poeta não é um rebel<strong>de</strong> sem causa,<br />
nem busca a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m pela <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, o “poema-discurso” acrescenta:<br />
Também procurei no céu a indicação <strong>de</strong> uma trajetória,<br />
mas houve sempre muitas nuvens.<br />
E suicidaram-se os operários <strong>de</strong> Babel.<br />
O caos, a incomunicação, as “muitas nuvens” estão nas coisas que se<br />
apóiam na razão geométrica, naquilo que Pascal chamava “esprit <strong>de</strong><br />
géométrie”, e opunha ao “esprit <strong>de</strong> finesse”. A confusão entre aqueles que<br />
apostam tudo no “logos”, na “razão” transformada em <strong>de</strong>usa, chegou, em nosso