guimarães rosa - Academia Mineira de Letras

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84 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS óculos que o médico tirou de si e lhe pôs nos olhos lhe revelaram, de repente, novas dimensões e cores da realidade física do mundo. Em arremate, doutor Lourenço o levou dali daquele lugar, para viver com ele e estudar, com o consentimento enternecido da mãe viúva agora unida, conjugalmente, ao tio Terêz. As novelas de Corpo de Baile constituem-se minuciosos documentos e registros da vida rural, primitiva e difícil, com suas complexas relações humanas, em um trecho de um dos vários sertões de Minas. Documento e registro, também, naturalmente, da época em que decorrem as estórias. Época ainda de carros-de-bois, lamparinas, candeias, lampiões, enxadas, cisternas, baldes, banhos em bacias, trabalhos braçais duríssimos, doenças – uma delas o tétano – que matam com escassa resistência, por falta de medidos e medicamentos. Quando Miguilim, agora adulto e veterinário profissional, retorna ao Buriti Bom – que fica em outra zona, um tanto distante do Mutum – a fim de pedir Maria da Glória em casamento, o fazendeiro que o hospeda antes d’ele chegar lá, Nhô Gualberto, afirma a ele que aquela era a primeira vez que ali chegava um jipe. Vocábulo que Guimarães Rosa grafa ainda na forma original inglesa: jeep. Isto indica ser palavra recentemente introduzida na língua portuguesa. A estória de Miguilim, como todas as de Corpo de Baile, é psicologicamente riquíssima. E nela abundam ambigüidades, com as quais João Guimarães Rosa demonstra compreender que na vida nem tudo se decifra: muito mistério e muita dúvida na vida não se esclarecem nunca, ou por impossibilidade ou mesmo por inconveniência ou desistência. A linguagem também é rica e eficaz – e escoimada dos hermetismos e dos desconcertantes – inesperáveis – lugares-comuns encontradiços, com variável freqüência, em outras novelas: por exemplo, em “Uma estória de amor” e “Buriti”. São duas as estórias de Miguilim, repito: “Campo geral” se continua em “Buriti”. As duas se completam uma à outra. Miguilim, que muito sofreu em menino, reaparece para continuar sua vida com talvez mais sofrimento. Não se sabe. Só se pode conjecturar. A verdade dolorosa é que a leitura de “Buriti” produz – em mim produziu, nas quatro vezes que a li – um sentimento de infinita, profunda, amaríssima tristeza. Tristeza resultante da constatação de quanto a vida humana pode conter de enganos, equívocos, cegueiras, frustrações, esperanças infundas, ilusões; e de que é completamente ilusória, tanta vez, a confiança na pureza de sentimentos do “bicho da terra tão pequeno”. Nesse aspecto, a cena de “Buriti” em que Miguilim, agora Miguel, conversando com Nhô Gualberto, lhe conta que voltou para pedir Maria da Glória em
Miguilim: uma outra epopéia de João Guimarães Rosa ___________________________________ Alaor Barbosa 85 casamento, é uma das mais substantivamente patéticas da literatura universal. A ingenuidade e retidão de Miguel contraposta à astúcia, dissimulação e solércia de Nhô Gualberto! Pobre Miguel! Não sabia de nada, o coitado... Ia casar enganado sobre a personalidade e experiências pregressas da mulher amada – experiências acontecidas durante aquele um ano de sua ausência. Pobre Miguel! Pobre filho dos Gerais de Minas! Sua condição de vítima nos faz pensar: Pobre humanidade! Pobre humanidade, no entanto heróica e valente, apesar de tudo; e merecedora de tudo o que sonha de bom e positivo. A ingenuidade, boa-fé e retidão de Miguel, se é que existem (pois a narrativa não nos revela a sua história e verdade íntima depois que saiu menino do Mutum para Curvelo) talvez seja uma indicação de esperança.
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