guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Permanência <strong>de</strong> Cecília ________________________________________________________ Pe. Paschoal Rangel 137<br />
Sei que canto. E a canção é tudo.<br />
Tem sangue eterno a asa ritmada.<br />
E um dia sei que estarei mudo:<br />
– mais nada. (6)<br />
O tempo existe no instante. Um instante que passa. Um instante que virá.<br />
E porque o instante existe, eu canto, tu cantas, nós cantamos. E a canção é tudo.<br />
Todo o ser, todas as coisas que são, que foram, que serão têm uns jeitos <strong>de</strong><br />
existir na canção. A canção é coisa <strong>de</strong> poetas. Mas o poeta é coisa <strong>de</strong> homem.<br />
Como ser homem integral, sem a poesia? Sem a canção? Tudo é, <strong>de</strong> algum<br />
modo, canção. A canção é o ritmo, o número perfeito, o invisível do visível, a<br />
palavra alada. Ave, Palavra, como diria Guimarães Rosa, num título <strong>de</strong>liberadamente<br />
polissêmico, que po<strong>de</strong> significar uma saudação, uma homenagem ou<br />
a transfiguração da palavra em pássaro – ou talvez mais travessamente, em pássara.<br />
Canção, observa Darcy Damasceno em Poesia e P<strong>rosa</strong> <strong>de</strong> Cecília Meireles,<br />
constitui “um tipo <strong>de</strong> composição lírica peculiar”, “sem estrutura rígida”,<br />
que “se tornará uma constante na criação poética <strong>de</strong> Cecília Meireles”. (7)<br />
Mas esse tema da canção em Cecília merece um aprofundamento.<br />
4. Cecília e a canção<br />
– Como notava Darcy Damasceno (e o citamos há pouco), a canção é um<br />
tipo <strong>de</strong> composição lírica que se tornou uma constante na criação poética <strong>de</strong><br />
Cecília Meireles.<br />
Em Cecília, poesia e música – uma música <strong>de</strong> “encantamento”, como<br />
disse Drummond (8) – se misturam, fazem quase uma coisa só. Não é<br />
certamente em todos os poetas que isto acontece. Alguns – como foi o caso dos<br />
nossos primeiros mo<strong>de</strong>rnistas – fizeram até da ruptura com a musicalida<strong>de</strong> uma<br />
ban<strong>de</strong>ira programática, ao menos durante um certo período mais iconoclástico<br />
ou antropofágico. Mas isso era mais revolução do que poesia. Nela, poesia é<br />
“vaga música”, é “viagem”, é “solombra”, são “baladas para El-Rei”, são<br />
“Noturnos <strong>de</strong> Holanda”. Ouçam este “Epigrama n.º 1”, que é o primeiro poema<br />
<strong>de</strong> Viagem:<br />
Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis<br />
uma sonora ou silenciosa canção:<br />
flor do espírito, <strong>de</strong>sinteressada e efêmera.