guimarães rosa - Academia Mineira de Letras
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72 _______________________________________________ REVISTA DA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS<br />
Ele intuiu, mais antecipadamente que nós, que era hora <strong>de</strong> vivenciar o eterno<br />
ainda em vida. Coisa a que se propôs o filho, em hora extrema e que não teve<br />
substância, homência <strong>de</strong> substituir o pai na canoa. “Ele que parecia vir: da parte<br />
<strong>de</strong> além.”<br />
“Temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo.”<br />
Mais um fracasso, mais uma traição ao pai. A gente jamais cuida<br />
totalmente do outro querido. A morte, qualquer morte, é um libelo que <strong>de</strong>nuncia<br />
nossas falhas. O filho rompe o vínculo, quebra a comparsaria que manteve,<br />
por anos, com o pai. A culpa aumenta em conseqüência, transmuda-se:<br />
“Sofri o grave frio dos medos, adoeci.” Psicossomatizou em sintomas <strong>de</strong><br />
tristeza e <strong>de</strong> falimento pessoal.<br />
Por fim, se constituiu em negativo, em melancolia: “sou o que não foi,”.<br />
Melancolia <strong>de</strong>corre da perda <strong>de</strong> um bem concreto, alegórico, imaginário ou da<br />
or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> um valor.<br />
Perda acarreta tristeza. Tristeza é o sentimento a-menos <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong><br />
um bem amado que se foi. “Sei que ninguém soube mais <strong>de</strong>le.”<br />
O objeto <strong>de</strong> fascínio, <strong>de</strong> apego ao qual está i<strong>de</strong>ntificado, perpetra um<br />
feito estúrdio. Cria um dilema: ou o abandona, como fizeram “nossa mãe, a<br />
filha, o irmão.” Ou atreve-se a partilhar a experiência do impon<strong>de</strong>rável e do<br />
ignoto. Para obter o saber do pai será necessário entrar só na canoa, em<br />
substituição ao <strong>de</strong>sgrenhado e macilento fantasma do pai. A inquietante<br />
estranheza da <strong>de</strong>caída figura do pai, transitando pela margem da morte, é<br />
<strong>de</strong>mais para quase todos nós. Sejamos compassivos para com a fuga do filho.<br />
Só João Guimarães Rosa obteve autorização para lidar com essas extremas<br />
dimensões. Ele soube usar sua língua pessoal na plenitu<strong>de</strong> da função <strong>de</strong><br />
produzir uma realida<strong>de</strong> sublimada.<br />
Todo ser humano tem uma canoa em meio ao rio a sua espera em áurea<br />
hora. Auroras.<br />
A gente morre para provar que viveu.<br />
Alguns querem, com pertinência, ler e enten<strong>de</strong>r o conto A terceira<br />
margem do rio como sendo a façanha <strong>de</strong> Rosa tornar a língua portuguesa<br />
consciente <strong>de</strong> si mesma, assumindo função produtora <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> ficcional e<br />
<strong>de</strong> criação <strong>de</strong> mundos possíveis. No que tange à primeira margem do idioma<br />
português, ele está voltado para o mar oceano e está inserido nas bibliotecas. A<br />
segunda margem é dada pelos sertões brasileiros, com sua linguagem mais rica<br />
e mais formosa. Dessas duas margens, Guimarães Rosa insinua/vislumbra uma<br />
terceira margem lingüística que é o campo <strong>de</strong>sbravado para se fazer um pensar<br />
novo, mais síntono com as complexida<strong>de</strong>s da vida <strong>de</strong> hoje. A obra em monu-