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também serem finalizados com ela. A música tem o poder de levar através
de alguma coisa, extraindo de você respostas compassivas que podem, no
seu devido tempo, ser incorporadas na sua própria vida interior. Você está
sendo devidamente socializado, até mesmo pela música mais íntima e
particular — ou talvez especialmente por esse tipo. (Considerem, por
exemplo, aqueles gestos íntimos na música de câmara de Brahms — como
o lento movimento do “Quinteto em Fá Menor” — como convites à ternura
de uma relação de longo prazo, os retratos de um amor doméstico que
sabemos jamais poderá realizado, mas que permanecem para sempre na
alma, como ideal e como censura.)
É por isto que os críticos tão comumente elogiam a música instrumental
por sua sinceridade e a criticam por seu sentimentalismo. Parece esquisito,
à primeira vista, descrever uma obra puramente instrumental nesses termos.
Como um quarteto de cordas pode ser mais sincero do que o outro? Os
violinos podem mentir? Como você pode dizer que o “Quinteto em Piano”
de César Franck é sentimental, como se pudesse ser comparado com Bambi
e a morte da Pequena Nell? A pertinência dessas descrições depende da
nossa habilidade de reconhecer “sentimento falso” nos gestos, nos
movimentos e nas sequências dramáticas. Um sentimento falso não é
apenas aquele que esconde uma pretensão. É aquele erroneamente dirigido.
Um sentimento falso é algo dirigido para si mesmo e não dirigido para o
outro. Podemos reconhecer nos gestos e nas expressões faciais a fisionomia
da pessoa que se dirige a si mesmo, a compaixão insincera que sempre vê
algum custo e benefício, a pretensão na simpatia que se aproveita do
sofrimento exibido. Então, é certo que podemos reconhecer isso também na
música? Não é um absurdo ouvir narcisismo nas melodias pegajosas e nas
harmonias untuosas do Scriabin tardio, ou a doçura sem sinceridade no
“Agnus Dei” do Requiem de Duruflé. Essas são coisas que ouvimos não por
percebermos analogias, mas por entrarmos na intencionalidade da linha
musical, ouvindo a sua “tematicidade”, e entendendo que ela não é dirigida
ao outro, mas a si mesmo.