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intimamente ao conceito a partir do qual se inicia a narrativa, que é o
conceito do sujeito como a característica definidora da condição humana, e
a característica à qual se deve o mistério do mundo.
Contido nesse conceito está aquilo que chamo de “intencionalidade
excessiva de atitudes interpessoais”. Em todas as nossas reações ao outro,
seja de amor ou ódio, afeição ou desprezo, aprovação ou desaprovação,
fúria ou desejo, nós olhamos para dentro do outro, em busca daquele
horizonte inatingível do qual ele ou ela se dirige a nós. Somos animais que
nadam na corrente da casualidade, que se relacionam um com o outro no
espaço e no tempo. Mas, no encontro eu-você, não vemos um ao outro
dessa maneira. Cada objeto humano é também um sujeito, se dirigindo a
nós com olhares, gestos e palavras, do horizonte transcendental do “eu”.
Nossas respostas aos outros se dirigem para aquele horizonte, indo além do
corpo para o ser que ele encarna. É essa característica das nossas respostas
interpessoais que dá tamanha força ao mito da alma, do verdadeiro, porém
oculto, self que está coberto pela carne. E é por isso que nossas reações
interpessoais se desenvolvem de uma determinada maneira: vemos um ao
outro como embrulhados por essas reações, por assim dizer, e nos
abraçamos para nos responsabilizarmos por elas como se tivessem sido
concebidas ex nihilo a partir do centro unificado do self. Você pode dizer
que, quando nos vemos dessa forma, estamos dando crédito a uma doutrina
metafísica, talvez até mesmo a um mito metafísico. Mas não se trata da
doutrina de Descartes sobre a substância da alma, nem obviamente de um
mito. Além disso, uma doutrina entronizada nas nossas emoções pessoais
mais básicas, que não pode ser eliminada sem solapar a relação eu-você
sobre a qual depende a nossa compreensão da primeira pessoa, não pode ser
rejeitada como um erro simples. Ela tem algo do prestígio que Kant atribui
à unidade original da consciência — o status de uma pressuposição do
nosso pensamento, incluindo o pensamento que pode nos levar a duvidar
dela. De fato, a compreensão desse assunto, a aderência a essa
pressuposição e a prática que vem dela é justamente o que significa a
liberdade transcendental de Kant.