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assim eles escutariam o mesmo que ouvem em uma sala de concerto. De
fato, isto é o que acontece com a arte da gravação. Alguém pode ser um
engenheiro de gravação absolutamente brilhante, mas sem nem um pouco
de ouvido musical, escutando na música apenas as sequências de sons
afinados. O reducionista argumentaria que, portanto, a música é nada além
da sequência dos sons afinados, uma vez que, se você reproduzir a
sequência, reproduzirá a música. A resposta seria falar o seguinte — claro,
é disto que a música depende, da sua emergência na sequência de sons. Os
sons são “ontologicamente prévios”. Mas para escutar a música não é
suficiente apenas perceber os sons. Ela é inaudível, exceto para aqueles com
a capacidade cognitiva de ouvir um movimento no espaço musical, uma
orientação, a tensão e a liberação, a força gravitacional nas notas do baixo, a
direção, ação e meta das melodias e assim por diante. Essas coisas que
escutamos na música não são ilusões: alguém que é incapaz de escutá-las
não escuta o que existe para ser ouvido, assim como alguém que falha ao
ver o rosto em um quadro falha ao ver tudo o que está ali para ser visto.
Certamente, a música é parte do mundo real. Mas ela é percebida apenas
para aqueles que são capazes de conceitualizar e responder ao som de modo
que ele não tenha um papel a desempenhar na ciência física da acústica.
Seria de extrema ajuda, neste ponto do nosso raciocínio, registrar um
protesto contra aquilo que Mary Midgley chama de esquema do “nada
além” [“nothing buttery”]. Existe um hábito disseminado de declarar as
realidades emergentes como algo que são “nada além” daquilo que nós
percebemos. A pessoa humana é “nada além” de um animal humano; a lei é
“nada além” de relações de poder; o amor sexual é “nada além” do desejo
de procriação; o altruísmo é “nada além” do que a estratégia genética
dominante descrita por Maynard Smith; n a Mona Lisa é “nada além” do que
pigmentos espalhados em uma tela; a Nona Sinfonia é “nada além” do que
uma sequência de sons afinados com timbres variados. E por aí vai. Livrarse
desse hábito é, a meu ver, a verdadeira meta da filosofia. E, se
conseguirmos nos livrar dele quando estamos lidando com as coisas