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cérebro, uma que nos possibilitasse realizar o sonho de Churchland e
substituir a psicologia popular com a supostamente verdadeira teoria da
mente. O que aconteceria então com a percepção em primeira pessoa? Para
saber que estou em determinado estado, eu teria de me submeter a uma
tomografia? Com certeza, se a verdadeira teoria da mente é uma teoria do
que acontece nas vias neurais, eu teria de descobrir sobre os meus próprios
estados mentais assim como eu descubro os seus, atingindo a certeza apenas
quando os rastreasse até a sua essência neural. Minhas melhores
observações seriam algo do tipo “parece que algo assim ou assado está
acontecendo…”. Mas o exemplo da primeira pessoa desapareceu, e apenas
permanece o exemplo da terceira pessoa. Será que desapareceu mesmo? Se
olharmos mais de perto, vemos que, de fato, o “eu” continua nessa situação.
Pois a expressão “parece que algo…” no relato que acabei de imaginar, na
verdade significa “parece a mim que algo…”, o que quer dizer que “estou
tendo uma experiência desse tipo”, e a esta declaração se liga o privilégio
da primeira pessoa. Ela não relata algo que tenho de descobrir ou que
poderia estar errado. Então o que ela relata? De alguma maneira, o “eu”
ainda está lá, no limite das coisas, e a neurociência apenas mudou o que
seria esse limite. O estado consciente não é aquilo que é descrito nos termos
da atividade no sistema nervoso, mas aquilo que é está sendo expresso na
declaração “parece a mim que…”.
Além disso, não é possível eliminar esse “eu”, esse ponto de vista na
primeira pessoa, e ainda manter as coisas sobre as quais a vida e a
comunidade humanas foram construídas. Como disse nos capítulos
anteriores, a relação eu-você é fundamental à condição humana. Somos
responsáveis por cada um de nós, e essa responsabilidade depende da nossa
capacidade de dar e receber motivos, que, por sua vez, depende da nossa
percepção em primeira pessoa. Mas os conceitos que envolvem todo o
processo — os conceitos de responsabilidade, intenção, culpa e assim por
diante — não têm lugar na ciência do cérebro. Eles vêm junto com um
esquema conceitual rival, que está, como gosto de dizer, em uma tensão
inevitável com qualquer ciência biológica da condição humana.