12.07.2015 Views

Tomo I

Tomo I

Tomo I

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

de responsabilidade. Nesse sentido, observa-se uma exigênciade que as políticas sociais fortaleçam as famílias. Elas nãodevem ser vistas como concorrentes, mas como parceiras dosprogramas. O confinamento é um dos modos de esconderaquilo que a sociedade entende como párias e de enfocar apobreza como questão judicial, policial e religiosa (cf. Foucaulte Goffman).Os procedimentos da doutrina de segurança nacional, levadosa termo durante o período da ditadura militar e fundados naconcepção da pobreza como questão policial e/ou judicial, nãoconseguiram equacionar a questão. Sua conseqüência foi oaumento das famílias em situação de vulnerabilidade e o númeroaproximado de 32 milhões de “menores” que necessitavamde cuidados. A prática do confinamento, nessas condições,tornou-se uma medida econômica e socialmente inviável.Forças sociais empenhadas na construção da democracia, daliberdade, da cidadania e da solidariedade, uniram-se, portodo o país, para reverter esse quadro. A partir da CPI sobre o“menor”, em 1975, multiplicaram-se os estudos e teses quepesquisavam a realidade do “menor” privado de direitos.[1] Emsíntese, a realidade denunciava o fracasso desses procedimentos,que não conseguiam garantir um certo bem-estar paraessa população. Os discursos sobre recuperação, reinserçãosocial, cidadania, direitos, não passavam de falácias. Suaeficácia se reduzia a definir o público-alvo como perigoso edelinqüente.Gostaríamos de registrar que é importante estabelecer estudosdo ponto de vista da instituição, mas que é também necessáriocompreender as práticas sociais dessa população supostamentemarginalizada e concebida como desviante. Não sepode entender essas práticas como revolucionárias ou decontestações políticas, mas antes como forma de denunciaras práticas de exploração e submissão, e o caos pedagógico.“São comportamentos de não submissão às condições que lhesão impostas, as quais se espera que ele se adapte pelasujeição.” (Violante, 1985:190.)Na doutrina de proteção integral, preconizada no Estatuto daCriança e do Adolescente (ECA), a população infanto-juvenil éprotagonista. Essa visão ultrapassa a perspectiva de Winnicott(1987:129), que concebe o furto, a agressão e comportamentosnão-adequados como práticas anti-sociais e acredita que asmanifestações de privação e delinqüência são ameaças àsociedade, tão perigosas quanto bombas. Esta concepçãopode dar sustentação às práticas da doutrina de segurançanacional, que via o menor como perigo e como ameaça à “ordem”.Foucault demonstra que a sociedade sem criminalidadeé um projeto do século XVIII. Hoje, é quase impossível pensaruma sociedade isenta de crimes. Criminalidade, delinqüênciae desvio são condições organizacionais da sociedade. Sem adelinqüência, não se justificariam os aparatos repressivos eoutras formas de organização social contemporânea. Emsíntese, “[...] tanto a criança quanto o adulto delinqüente justificarama criação de uma superestrutura jurídico-burocráticoadministrativa”(Silva, 1997:159), que persiste, motiva e dáuma certa explicação racional do abandono, do crime e dodesvio, enquadrando os sujeitos destituídos de seus direitos(cf. Foucault, 1979 e Silva, 1997).Nessa mesma direção, Lefèbvre, ao fazer uma análise da obrade Marx e de Balzac, recupera a idéia de que o“[...] criminoso não produz somente crimes, mas também o direitocriminal, o professor que faz cursos sobre o direito criminale até o manual inevitável, onde esse professor condensaseu ensinamento, com vistas à venda. [...] O criminoso produz,além do mais, toda a organização da polícia e da justiça criminal,os juízes, os carrascos, os jurados e as diversas profissõesque constituem as tantas categorias da divisão social dotrabalho, que desenvolvem as diversas faculdades do espíritohumano, criam novas necessidades e novas maneiras desatisfazê-las. A tortura propiciou invenções mecânicas as maisengenhosas e ocupou uma multidão de homens trabalhadoresna produção desses instrumentos. O criminoso produz umaimpressão seja moral seja trágica e presta assim serviço aomovimento dos sentimentos morais e estéticos do público.Além dos manuais sobre o direito criminal, do código criminale dos legisladores, ele produz arte, literatura, romance e atétragédias. O criminoso traz uma diversão à monotonia e àcalma tranqüilidade da vida burguesa... O criminoso aparece,pois, como um desses fatores que estabelecem o equilíbriosalutar e abrem uma perspectiva de ocupações úteis”(Lefèbvre, 1969:28).Um outro aspecto pelo qual a doutrina de situação irregularcompreende a marginalização está na linha da patologia, deuma doença a ser tratada. O desviante é passível de recuperação,uma vez que o mal nele se localiza, como fenômenoendógeno (cf. Velho, 1999:12). A visão atual é de tentar compreenderas práticas de desvio no cerne da cultura ou das relaçõessociais. Se não resolve o problema, essa posição ampliao leque de possibilidades de compreensão das peculiaridadesdos processos de socialização e de humanização. Issonos permite interpretar o caráter inovador e criativo do comportamentodesviante, para responder a determinadas práticaspedagógicas ou sistemas educacionais e jurídicos. A práticadesviante de hoje pode oferecer elementos para a construçãode um processo civilizatório (cf. Velho, 1999:15).O modelo de atendimento descrito no Código de Menores de1979 acabou por transformar a vítima em ré e fortalecer acriminalidade. As instituições que davam sustentação a esseordenamento jurídico, que deveriam cuidar, proteger e educar,eram uma fábrica de produção de delinqüência. O paradigmada doutrina de proteção integral tem a finalidade de reverteresse quadro. Crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento,cidadãos e sujeitos de direitos. Essa concepçãotraz para o campo da práxis a exigência de uma nova identidadeinstitucional, fundada na busca da compreensão das causasque levam essa população a um mal-estar social e pessoalquase permanente. O ECA é um instrumento jurídico parareverter a cultura do mal-estar social. “É esta a arena que temde avançar; se os sujeitos não cobrarem luta contra a pobreza,em favor de emprego, políticas públicas, elas não virão. Se ossujeitos não se organizarem para nova forma de Estado social,ele não existirá.” (Manzini-Covre, 1993:10.)O ECA rompe com o paradigma do seqüestro da criança e doadolescente das famílias pobres, a resposta que o Estado e asociedade davam às vítimas da pobreza e da desigualdadesocial. Os fundamentos da doutrina de situação irregularfortaleciam a prática da vigilância e do confinamento dos “menores”,rotulados de “desviantes, pivetes, delinqüentes, trombadinhas,marginalizados e perigosos”. O fato de serem filhosde operários e famílias pobres conferia ao Estado o direito deconfiná-los em instituições totais.[2] Apesar da insuficiência deestudos sobre os efeitos do confinamento nas instituiçõestotais, sabemos que esse procedimento pedagógico e jurídicoacaba por submeter, infantilizar, interferir e deixar marcas nodesenvolvimento da criatividade e da inteligência. Essas “[...]marcas se mostram presentes nestes indivíduos, na mocidade,influenciando sua trajetória e sua inserção social” (Altoé,1993:61).A partir dessa perspectiva, podemos inferir que o ECA é umprojeto de uma cultura democrática, com a finalidade, não sóde garantir os direitos, mas também de alterar o modelo econômico,social e político da sociedade brasileira. Talvez umadas primeiras mudanças na cultura e na política brasileira,advindas dessa lei, seja a não institucionalização de criançase adolescentes, por motivos de pobreza. Nenhuma lei temcondições de alterar a sociedade sem antes impregnar a cultura.Somente assim, é possível lançar as bases para a consolidaçãodo ECA. A mudança de cosmovisão não ocorre de umdia para o outro. Faz-se por meio de pequenos gestos eatitudes.Na tensão entre cultura e ordenamento jurídico, é que compre-562

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!