Durkheim e o fenômenojurídico na obrada Divisão <strong>do</strong> TrabalhoSocial: ensaio críticoJoão Maurício Martins <strong>de</strong> AbreuAdvoga<strong>do</strong>. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF.Professor <strong>de</strong> Direito Civil da UNESA (licencia<strong>do</strong>).1 – IntroduçãoO presente ensaio tem o objetivo <strong>de</strong> analisar e problematizar um<strong>do</strong>s principais pressupostos teóricos utiliza<strong>do</strong>s por Émile Durkheim (1858-1917) na obra Da divisão <strong>do</strong> trabalho social, 1 notadamente aquele segun<strong>do</strong>,o qual o Direito seria um símbolo visível da moralida<strong>de</strong> social. 2 Nesselivro, o autor <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a tese <strong>de</strong> que a divisão <strong>do</strong> trabalho social, além <strong>de</strong>sua conhecida função econômica, a maximização <strong>do</strong>s lucros, tem tambémuma função moral. E é no processo <strong>de</strong> construção argumentativa que arelação entre Direito e moralida<strong>de</strong> social é sobejamente <strong>de</strong>senvolvida.Durkheim é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s funda<strong>do</strong>res da Sociologia comodisciplina autônoma <strong>do</strong> conhecimento. Foi ele quem, com maior vigor<strong>de</strong>ntre seus contemporâneos, reivindicou o caráter científico e específicoao conhecimento sociológico. Para tanto, teve <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir o objeto e ométo<strong>do</strong> particulares da Sociologia, procuran<strong>do</strong>, assim, estabelecer umaseparação objetiva em relação a outros campos <strong>do</strong> saber, como a filosofiae a psicologia, e, além disso, eliminar qualquer tipo <strong>de</strong> influxo <strong>de</strong> saberesnão científicos em sua disciplina.1 Tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utoramento escrita no último quarto <strong>do</strong> século XIX, em meio ao processo <strong>de</strong> massiva industrializaçãocapitanea<strong>do</strong> pela Inglaterra. DURKHEIM. Émile. Da divisão <strong>do</strong> trabalho social. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes,2004.2 É importante, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, pontuar em que senti<strong>do</strong> é concebida dita moralida<strong>de</strong> social para o autor: trata-se <strong>de</strong> umesta<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência que liga o indivíduo à socieda<strong>de</strong> e conforma a conduta daquele às normas provenientes<strong>de</strong>sta. Op. cit., 2004, p. 420-1.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011 179
Percebem-se nitidamente, no pensamento <strong>do</strong> autor, influências<strong>do</strong> positivismo <strong>de</strong> August Comte 3 , traços evolucionistas 4 , e, o que émais importante para sua compreensão, marcada posição em favor <strong>do</strong>que se convencionou chamar, posteriormente, <strong>de</strong> coletivismo meto<strong>do</strong>lógico5 .O coletivismo meto<strong>do</strong>lógico e a influência positivista, em especial,estão refleti<strong>do</strong>s na importante noção <strong>de</strong> fato social, cunhada porDurkheim 6 em resposta aos anseios <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> <strong>de</strong>puração <strong>do</strong>conhecimento sociológico, que sempre nortearam seus trabalhos.Os fatos sociais representam o objeto específico, particular, da Sociologia.São constituí<strong>do</strong>s por mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pensar, agir e sentir, cuja singularida<strong>de</strong>resi<strong>de</strong> em existirem fora das consciências individuais; são, portanto,exteriores aos indivíduos, mas, além disso, são também coercitivos.Exteriores, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que atuam sobre as consciências individuaisin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong>; coercitivos, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que exercemsobre os indivíduos uma tal força, uma tal constrição, que impõem asua conformação com as regras sociais que lhes transcen<strong>de</strong>m, sob pena<strong>de</strong> sanções das mais variadas naturezas.Um bom exemplo <strong>de</strong> fato social é a língua pre<strong>do</strong>minante em cadasocieda<strong>de</strong>: ela in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da vonta<strong>de</strong> conjuntural <strong>do</strong>s indivíduos e se lhesimpõe.3 Dentre os muitos pontos <strong>de</strong> contato com os pressupostos <strong>do</strong> positivismo, <strong>de</strong>stacam-se <strong>do</strong> pensamento durkheimianoos seguintes: a reflexão científica <strong>de</strong>ve partir da realida<strong>de</strong> sensível e o conhecimento científico é neutro. Cf.,com breve exposição da classificação usual das teorias sociológicas e, em caráter propositivo, com uma perspectivaclassificatória própria, MELLO Marcelo P. "Vertentes <strong>do</strong> pensamento sociológico empirista e naturalista e algumasrazões para se duvidar <strong>de</strong>las". In: Sociologia e direito: exploran<strong>do</strong> as interseções. Niterói: PPGSD, 2007, p. 9-37.4 Não são raras as referências <strong>do</strong> autor a graus hierarquiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>: das simples (ou, como ele mesmo<strong>de</strong>nomina, primitivas), às complexas. As transformações sociais obe<strong>de</strong>ceriam, portanto, a um processo evolutivodas socieda<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> o lugar da mudança não é a revolução, mas a evolução. V. GIDDENS, A. apud SOUZA, Ricar<strong>do</strong>Luiz. "Normas morais, mudanças sociais e individualismo segun<strong>do</strong> Durkheim". In: Confluências. Niterói: PPGSD, nov.2007, v. 9.2, p. 72.5 Em oposição ao individualismo meto<strong>do</strong>lógico, que tem em Hobbes um <strong>de</strong> seus mais notórios <strong>de</strong>fensores, Durkheimpostula que a socieda<strong>de</strong> é uma espécie <strong>de</strong> sujeito transcen<strong>de</strong>nte e sui generis, maior <strong>do</strong> que a soma <strong>do</strong>s indivíduosque a compõem e modula<strong>do</strong>r <strong>de</strong> suas relações sociais; para ele, “a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina tu<strong>do</strong>: a divisão <strong>do</strong> trabalho,o crime, o suicídio, as formas <strong>de</strong> classificação, a religião e as <strong>de</strong>mais representações coletivas” (...), que “nadamais significam em si mesmos; eles encontram as razões <strong>de</strong> sua existência na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar ou projetara existência da própria socieda<strong>de</strong>” (p. 157). VARGAS, Eduar<strong>do</strong> V. "Durkheim e o <strong>do</strong>mínio da sociologia". In: AntesTar<strong>de</strong> <strong>do</strong> que nunca: Gabriel Tar<strong>de</strong> e a emergência das ciências sociais. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Contracapa/FAFICH/UFMG,2000, p. 129-161.6 A noção <strong>de</strong> fato social foi exposta em DURKHEIM, É. As regras <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> sociológico. São Paulo: Nacional, 1963.Para uma síntese sobre o tema, cf. DURKHEIM, E. "O que é fato social?" In: Rodrigues, José Albertino (org.). ÉmileDurkheim. São Paulo: Ática, 1988, p. 46-52.180R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011
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