individuais coinci<strong>de</strong>m com a consciência coletiva, ou seja, o grau <strong>de</strong> diferenciaçãoentre os membros da socieda<strong>de</strong> é inócuo: as opiniões e oshábitos são similares; logo, assim também o é a intensida<strong>de</strong> da reprovaçãoàs transgressões. Aqui, a solidarieda<strong>de</strong> social se baseia na similitu<strong>de</strong><strong>do</strong>s indivíduos, na “atração <strong>do</strong> semelhante pelo semelhante”, na felizexpressão <strong>do</strong> autor (Durkheim: 2004, p. 98).Por outro la<strong>do</strong>, o <strong>do</strong>mínio numérico <strong>de</strong> normas restitutivas numacerta socieda<strong>de</strong> exprime uma modalida<strong>de</strong> mais sutil <strong>de</strong> moralida<strong>de</strong> vigente:trata-se da solidarieda<strong>de</strong> orgânica.Com efeito, as normas restitutivas, como o próprio nome <strong>de</strong>ixa entrever,embora haja exceções, não visam a imputar castigo ou sofrimentoao transgressor, mas sim a restaurar o statu quo ante, ou seja, a recompora situação fática ao seu esta<strong>do</strong> “normal”. “Se já há fatos consuma<strong>do</strong>s,o juiz os restabelece tal como <strong>de</strong>veriam ter si<strong>do</strong>. Ele enuncia o direito,não enuncia as penas. As in<strong>de</strong>nizações por perdas e danos não têm caráterpenal, são somente um meio <strong>de</strong> voltar ao passa<strong>do</strong> para restituí-lo,na medida <strong>do</strong> possível, sob sua forma normal” (Durkheim: 2004, p. 85).Entretanto, tal reparação não diz respeito, segun<strong>do</strong> o autor, apenas aosparticulares envolvi<strong>do</strong>s; não concernem, p. ex., apenas aos contratantesem litígio pelo cumprimento <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> celebra<strong>do</strong>. Embora estranhas àconsciência coletiva – que é comum a to<strong>do</strong>s e que fundamenta as normasrepressivas <strong>do</strong> Direito Penal – as normas restitutivas também representamuma ligação, uma <strong>de</strong>pendência, <strong>do</strong> indivíduo em relação à socieda<strong>de</strong>;elas expressam a presença <strong>do</strong> valor <strong>de</strong> cooperação <strong>de</strong> cada um para como to<strong>do</strong>; <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, ao restaurar o statu quo ante, a norma restitutivareintegra o vínculo cooperativo que une a socieda<strong>de</strong>.Ressalve-se, num parêntesis, que Durkheim põe à parte nesse eloindivíduo-socieda<strong>de</strong> as relações oriundas <strong>de</strong> direitos reais – ou seja, aquelasque unem as pessoas não entre si, mas com as coisas –, das quais o direito<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> é o exemplo mo<strong>de</strong>lar. Não há aí, diz ele, uma “solidarieda<strong>de</strong>verda<strong>de</strong>ira, com uma existência própria e uma natureza especial,mas antes o la<strong>do</strong> negativo <strong>de</strong> toda espécie <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>. A primeiracondição para que um to<strong>do</strong> seja coeso é que as partes que o compõemnão se choquem em movimentos discordantes. Mas esse acor<strong>do</strong> externonão faz a sua coesão; ao contrário, a supõe.” (Durkheim: 2004, p. 95).Assim é que, exceto quanto às mencionadas relações oriundas <strong>de</strong>direitos reais, em que prevalecem em número as normas <strong>de</strong> naturezaR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011 185
estitutiva, está-se em presença <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> complexa, cujo vínculo<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> social, basea<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma prepon<strong>de</strong>rante na cooperação<strong>do</strong>s indivíduos, <strong>de</strong>riva especialmente da divisão <strong>do</strong> trabalhosocial, à moda <strong>de</strong> um organismo, em relação a suas células, teci<strong>do</strong>s eórgãos: cada um com sua função particular; to<strong>do</strong>s jungi<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,ao fim e ao cabo, <strong>de</strong> uma mesma causa-final, que é o bom funcionamento<strong>do</strong> conjunto.Em bela síntese, nosso autor anota: “[c]ooperar, <strong>de</strong> fato, é dividiruma tarefa comum” (Durkheim: 2004, p. 100).Para Durkheim (2004, p. 422-3), é a intensificação da divisão <strong>do</strong>trabalho social o motivo <strong>de</strong>terminante da solidarieda<strong>de</strong> orgânica, uma vezque <strong>de</strong>la provém o processo correlato <strong>de</strong> diferenciação das consciênciasindividuais – entre elas mesmas e, consequentemente, em relação à consciênciacoletiva (comum). Na mesma medida em que se especializam asfunções <strong>do</strong>s indivíduos, formam-se personalida<strong>de</strong>s díspares, grupos especiaise setoriza<strong>do</strong>s, que aos poucos vão per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a noção <strong>do</strong> to<strong>do</strong>. Nãoobstante isso, conscientes ou não, to<strong>do</strong>s estão vincula<strong>do</strong>s por inúmeroselos <strong>de</strong> cooperação, sem os quais a socieda<strong>de</strong> se dissolveria.O escopo <strong>de</strong> uma análise sociológica sobre a divisão <strong>do</strong> trabalhosocial, como a feita por Durkheim, seria, então, revelar a solidarieda<strong>de</strong>cooperativa, orgânica, daí oriunda.Em resumo: o papel das semelhanças sociais, nas socieda<strong>de</strong>s simples,é exerci<strong>do</strong> pela divisão <strong>do</strong> trabalho social, nas socieda<strong>de</strong>s complexas;naquelas são as similitu<strong>de</strong>s, nestas a divisão <strong>do</strong> trabalho, a fonte primordialda coesão social. Provam-no, segun<strong>do</strong> nosso autor, o progressivo encolhimentoverifica<strong>do</strong> pelas normas jurídicas repressivas, e a consequenteampliação das normas jurídicas restitutivas, à medida que a divisão <strong>do</strong>trabalho social avança e as socieda<strong>de</strong>s se tornam mais complexas.3 - Direito e moralida<strong>de</strong> social: algumas reflexõesDurkheim buscou no Direito o da<strong>do</strong> empírico da moral, cren<strong>do</strong> que,sem isso, sem um fato concreto, observável e objetivo que lhe <strong>de</strong>sse suporte,suas conclusões per<strong>de</strong>riam em cientificida<strong>de</strong>. A <strong>de</strong>fesa veemente<strong>de</strong>ssa etapa <strong>de</strong> seu raciocínio é revela<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> um positivismo sociológicohoje ultrapassa<strong>do</strong>. No entanto, seria um grave erro relegar a um traço186R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011
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