1987 - Projeto de Constituiçao angustia o país
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Nas miragens <strong>de</strong>ssa divagação aparece – sempre difusamente – a impressão <strong>de</strong> que gran<strong>de</strong><br />
número <strong>de</strong> sofrimentos po<strong>de</strong>ria ser remediado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo se todos os bens se dividissem igualmente<br />
entre os homens. E isto, tanto a nível <strong>de</strong> nações como a nível <strong>de</strong> indivíduos.<br />
De fato, imaginam os utopistas que mediante essa divisão igualitária cessariam, antes <strong>de</strong><br />
tudo, as mais variadas formas <strong>de</strong> pobreza que hoje existem. Tal seria o fim das carências que afetam<br />
o corpo. E igualmente das que fazem sofrer a alma.<br />
Ou seja, mesmo entre pessoas que não experimentam qualquer necessida<strong>de</strong> física, a<br />
proprieda<strong>de</strong> privada seria causa <strong>de</strong> um pa<strong>de</strong>cimento autêntico. Com efeito, toda <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> faz<br />
sofrer quem tem menos. A tal ponto que a condição <strong>de</strong> um milhardário seria justificadamente penosa<br />
para este, quando posto em confronto com a <strong>de</strong> um multi-milhardário.<br />
E não vale isto tão-só para <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s econômicas, mas ainda para os reflexos que essas<br />
<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m produzir, hoje em dia, nos vários campos da existência: <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ponto<br />
<strong>de</strong> partida na vida, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sobretudo no que cada qual herda <strong>de</strong> fortuna, <strong>de</strong> educação, <strong>de</strong><br />
relações, <strong>de</strong> prestígio, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Tudo isto po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar, em quem tem menos ou é menos, uma<br />
tristeza ocasionada por sua inferiorida<strong>de</strong>.<br />
Um igualitário famoso, o Padre Sieyès 71 , <strong>de</strong>screveu a organização das classes sociais <strong>de</strong> seu<br />
tempo – e entre elas incluía o Clero – como uma “cascata <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezos”. Ou seja, cada superior<br />
<strong>de</strong>sprezaria os inferiores. O que acarretaria – já se vê – que cada inferior odiasse seu superior. Não se<br />
po<strong>de</strong>ria exprimir <strong>de</strong> modo mais conciso o princípio gerador da luta <strong>de</strong> classes.<br />
3 . Conseqüência necessária <strong>de</strong>ssas divagações sentimentais: cumpre atuar<br />
para que <strong>de</strong>sapareçam todas as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />
É incontável o número <strong>de</strong> pessoas que vêem do mesmo modo as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s ainda<br />
existentes na organização social contemporânea, contudo menos hierarquizada, em tantos dos seus<br />
aspectos, do que a do período final da Monarquia francesa.<br />
Bem entendido, nem todas as pessoas têm coragem <strong>de</strong> explicitar até suas últimas<br />
conseqüências esse ponto <strong>de</strong> chegada extremo <strong>de</strong> suas divagações sócio-sentimentais. Mas para lá<br />
ten<strong>de</strong>m, com celerida<strong>de</strong> maior ou menor, incontáveis contemporâneos nossos.<br />
A função social da proprieda<strong>de</strong> se lhes afigura como a obrigação que pesa diretamente sobre<br />
todo mundo que tem mais (e pesa in obliquo sobre todo mundo que, a qualquer título, é mais) <strong>de</strong><br />
colaborar por todos os meios na tarefa <strong>de</strong> erodir gradualmente a sua situação, em benefício dos que<br />
têm ou são menos. De sorte que <strong>de</strong>sapareçam todas as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, e com estas a causa que ainda<br />
fará gemer a humanida<strong>de</strong>, até o dia em que a última <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>sapareça da terra.<br />
I<strong>de</strong>al todo perfumado <strong>de</strong> compaixão, que algum revolucionário utópico do século XVIII<br />
exprimira sem receio <strong>de</strong> se contradizer, mediante o <strong>de</strong>sejo – impregnado, segundo ele, <strong>de</strong> justiça – <strong>de</strong><br />
“ver o último Rei enforcado com as tripas do último Padre” 72 .<br />
4 . Ao sopro mortífero do marxismo, esse anelo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se basear na<br />
carida<strong>de</strong> cristã e começa a apelar para a “justiça” marxista<br />
Ainda há algum tempo, toda essa divagação nas nuvens era qualificada, em vários meios<br />
católicos, como um impulso sublime <strong>de</strong> carida<strong>de</strong> cristã. Mas, sob o sopro mortífero do marxismo,<br />
radicalmente oposto ao próprio conceito <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, nos meios <strong>de</strong> esquerda católica se acentua<br />
sempre mais a tendência a basear todo esse élan “cristão”, não na carida<strong>de</strong>, porém na justiça.<br />
71<br />
Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1835). Vigário geral <strong>de</strong> Chartres, foi sucessivamente membro da Assembléia<br />
Nacional Constituinte, em 1789, da Convenção, do Conselho dos Quinhentos, do Diretório e do Consulado. Organizou<br />
com Napoleão o golpe <strong>de</strong> 18 Brumário.<br />
72<br />
A frase é citada por Chamfort (1741-1794), que possivelmente se inspirou em uma poesia <strong>de</strong> Di<strong>de</strong>rot (1713-<br />
1784) (cfr. Dictionnaire <strong>de</strong>s citations françaises et étrangères, Paris, 1982, pp. 114 e 182).<br />
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