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1987 - Projeto de Constituiçao angustia o país

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No Brasil, em particular, o fenômeno é muito visível: Des<strong>de</strong> 1984, quando se tornou certa<br />

sua convocação, a gran<strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> em torno do pensamento dos 559 constituintes, girava no eixo<br />

da classificação <strong>de</strong> ‘direita’ e ‘esquerda’. Eleitos e empossados, verifica-se que é impossível passar<br />

uma linha <strong>de</strong>marcatória tão simples (“Veja”, 4-2-87).<br />

O “Jornal do Brasil” (14-6-87) comenta em editorial: Em Brasília neste instante, o que é<br />

maioria e o que <strong>de</strong>ve ser tido por minoria ninguém sabe. Cada grupelho, por mais insignificante,<br />

sente-se em condições <strong>de</strong> dominar a Constituinte ... quem é comunista ou quem não é, quem se coloca<br />

à esquerda ou à direita <strong>de</strong> quem, tudo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do grau <strong>de</strong> confusão medido na hora, segundo a<br />

escala estabelecida por cada um [sic] constituinte.<br />

A respeito da dicotomia direita-esquerda, Roque Spencer <strong>de</strong> Barros, assim se exprime em<br />

artigo para o “O Estado <strong>de</strong> S. Paulo” (30-6-87):<br />

Luiz Carlos Lisboa ... <strong>de</strong>dicou breve comentário à pesquisa realizada pelo Prof. Leôncio<br />

Martins Rodrigues, com a cobertura do Jornal da Tar<strong>de</strong>, acerca da ‘imagem i<strong>de</strong>ológica’ que os<br />

nossos constituintes fazem <strong>de</strong> si próprios. O resultado: 53% dos nossos constituintes se consi<strong>de</strong>ram<br />

<strong>de</strong> ‘centro-esquerda’ ou da ‘esquerda mo<strong>de</strong>rada’.<br />

Nos países intelectualmente sub<strong>de</strong>senvolvidos – e, parcialmente, até em certos países<br />

<strong>de</strong>senvolvidos -, graças à magia das palavras, ‘ser <strong>de</strong> esquerda’ é chique, revelando um espírito<br />

mo<strong>de</strong>rno e ‘progressista’, sem os ranços do conservadorismo próprio a seus avós. O ‘ esquerdista’<br />

se imagina ‘liberado’, aberto, compreensivo, <strong>de</strong> visão larga e profundamente humanitário. Liberado,<br />

obviamente, com mo<strong>de</strong>ração, <strong>de</strong> forma a <strong>de</strong>sfrutar das vantagens <strong>de</strong> ‘estar a favor do sentido da<br />

história’, que ‘marcha para o socialismo’... mas sem apressar-se muito para que ela chegue lá ...<br />

Poucos, apenas 4%, se <strong>de</strong>claram ‘esquerdistas radicais’... Formam o que po<strong>de</strong>ríamos<br />

chamar <strong>de</strong> ‘turma da implosão’, isto é, dos que advogam a <strong>de</strong>molição revolucionária do edifício<br />

social, metendo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le suas cargas <strong>de</strong> dinamite. São os enragés, à moda dos Genoínos, Arantes<br />

e Lulas, este, aliás, ao que parece, jogando hoje entre o meia e a ponta... pois não é que até a Escola<br />

Superior <strong>de</strong> Guerra ela já freqüenta?<br />

Ninguém, por outro lado, bota a carapuça <strong>de</strong> ‘direitista radical’.... O ‘direitista radical’<br />

seria, no vocabulário corrente dos políticos, o ‘fascista’ ou o ‘nazista’... É um tipo vocabularmente<br />

superado e fora <strong>de</strong> moda. Ser ponta esquerda, muito bem, mas direita!<br />

Mesmo o <strong>de</strong>clarar-se ‘mo<strong>de</strong>rado <strong>de</strong> direita’, ‘meia direita’ ou pertencente à direita ajuizada<br />

e bem comportada, causa aos nossos políticos, assim como aos nossos intelectuais, um certo<br />

constrangimento, um dificilmente disfarçável mal-estar. Afinal, o que admite ser rotulado <strong>de</strong>ssa<br />

maneira po<strong>de</strong> acabar consi<strong>de</strong>rado um ‘atrasadão’, <strong>de</strong>modé, perdido nas malhas do conservadorismo<br />

ou até mesmo – insulto dos insultos – um ‘reacionário’.<br />

Algo semelhante se passa com a distinção entre “conservadorismo” e “progressismo”: Os<br />

sinais trocados que balizam a vida política brasileira piscam com a mesma inautenticida<strong>de</strong> na<br />

Constituinte: conservadores e progressistas são rótulos vazios <strong>de</strong> significado, e colados erradamente<br />

(“Jornal do Brasil”, 2-6-87).<br />

Tudo isto permitiu ao senador Fernando Henrique Cardoso concluir: Há tanta confusão entre<br />

direita, centro e esquerda, que é difícil estabelecer limites. Tenho visto muito ‘progressista’<br />

retrógrado e muito conservador avançado. (“Folha <strong>de</strong> S. Paulo”, 9-4-87).<br />

* * *<br />

A vida política brasileira parece mesmo compelida a naufragar nos mares do relativismo a-<br />

i<strong>de</strong>ológico e das in<strong>de</strong>finições doutrinárias. Em tal atmosfera, quem propugna o <strong>de</strong>bate sério em torno<br />

<strong>de</strong> programas partidários, <strong>de</strong> doutrinas, <strong>de</strong> teorias e <strong>de</strong> idéias, corre o risco <strong>de</strong> ser tão mal recebido<br />

quanto um maestro que, em algum campo <strong>de</strong> futebol, se pusesse a reger músicas clássicas no momento<br />

em que a torcida festeja uma vitória!<br />

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