1987 - Projeto de Constituiçao angustia o país
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Renascida <strong>de</strong> suas próprias cinzas, essa heresia foi ganhando terreno discretamente nos<br />
Pontificados <strong>de</strong> Pio XI (1921-1939) e <strong>de</strong> Pio XII (1939-1958). E <strong>de</strong>la se originou a famosa “esquerda<br />
católica”, já pujante na fase pré-conciliar e quase triunfante <strong>de</strong>stes 22 anos pós-conciliares 75 .<br />
É notadamente neste último quarto <strong>de</strong> século que não só se vem usando, mas principalmente<br />
se vem abusando, das palavras função social da proprieda<strong>de</strong>.<br />
E, como sempre, o caldo <strong>de</strong> cultura para a expansão <strong>de</strong>sses terríveis germes <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagregação<br />
religiosa e social, é o sócio-sentimentalismo acima <strong>de</strong>scrito. A tal ponto que, generalizada a<br />
divulgação do ensinamento da Igreja, contrária a este, ou renovada em novos documentos pontifícios<br />
a rejeição <strong>de</strong>le, po<strong>de</strong>-se esperar que o germe <strong>de</strong> movimentos como os <strong>de</strong> certa Teologia da Libertação<br />
76<br />
per<strong>de</strong>riam sua força <strong>de</strong> expansão em escala <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s massas humanas. A expressão função social<br />
da proprieda<strong>de</strong> seria então libertada, daí por diante, <strong>de</strong> seu atrativo talismânico postiço. E o<br />
verda<strong>de</strong>iro conceito <strong>de</strong> função social da proprieda<strong>de</strong> se expandiria sem maior empecilho, para o bem<br />
espiritual e temporal dos homens.<br />
9 . A “função social da proprieda<strong>de</strong>” no ensino tradicional da Igreja<br />
Com efeito, o fato <strong>de</strong> essa ação talismânica se ter incubado nas palavras “função social da<br />
proprieda<strong>de</strong>” não quer dizer que o conteúdo natural <strong>de</strong>las seja ilegítimo.<br />
Afirmou-o taxativamente Pio XI, embora ainda sem usar a expressão hoje consagrada:<br />
“Primeiramente tenha-se por certo que nem Leão XIII, nem os teólogos, que ensinaram seguindo a<br />
doutrina e a direção da Igreja, negaram jamais ou puseram em dúvida a dupla espécie <strong>de</strong> domínio,<br />
que chamam individual ou social, segundo diz respeito aos particulares ou ao bem comum”<br />
(Encíclica Quadragesimo Anno, Coleção Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, 1959, 5 ª ed.,<br />
vol. 3, p. 18).<br />
Esta afirmação soou em muito meios católicos à maneira <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>. Na realida<strong>de</strong>, porém,<br />
não houve um século <strong>de</strong> sua História em que a Igreja – em uns ou outros termos – não ensinasse, não<br />
praticasse e não estimulasse os católicos a praticarem a função social da proprieda<strong>de</strong>.<br />
10 . Limites e sutilezas da função social da proprieda<strong>de</strong>, segundo os<br />
moralistas católicos<br />
Sem entrar aqui nas explicáveis discussões sobre os verda<strong>de</strong>iros limites <strong>de</strong>ssa função, po<strong>de</strong>se<br />
afirmar, num sentido muito amplo, que a função social da proprieda<strong>de</strong> se realiza quando o<br />
proprietário consente nos sacrifícios necessários para o bem comum.<br />
À primeira vista, nada <strong>de</strong> mais simples, nem <strong>de</strong> mais claro: se A é proprietário <strong>de</strong> bens que<br />
lhe sobram, e B está em risco <strong>de</strong> vida porquê lhe falta uma parcela <strong>de</strong>sses bens e, a<strong>de</strong>mais, B não tem<br />
com o que pagar A, estabelece-se entre A e B uma situação conflitual. Pois o direito à vida <strong>de</strong> B entra<br />
em choque com o direito <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> A. Qual dos direitos <strong>de</strong>ve prevalecer? Evi<strong>de</strong>ntemente o<br />
<strong>de</strong> B, pois o direito que um homem tem à sua vida é preeminente em relação ao direito que outro tem<br />
à sua proprieda<strong>de</strong>.<br />
Esta solução tão simples, que se pren<strong>de</strong> à função social da proprieda<strong>de</strong>, constituía matéria<br />
para investigações – obras-primas <strong>de</strong> sutileza e sensatez – dos moralistas católicos antigos. Assim,<br />
<strong>de</strong>batiam eles se a obrigação <strong>de</strong> A assistir a B pertencia aos <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> carida<strong>de</strong> ou aos <strong>de</strong> justiça.<br />
Neste último caso, em que gênero <strong>de</strong> justiça se encaixavam: comutativa ou distributiva. E sendo na<br />
distributiva, caso o beneficiário adquirisse posteriormente haveres que lhe sobrassem, se era obrigado<br />
a reembolsar o benfeitor. Em qualquer eventualida<strong>de</strong>, ficaria B <strong>de</strong>vendo gratidão a A, isto é, afeto,<br />
respeito, ajuda quando ocorresse o caso? E assim outras questões, algumas das quais nada simples,<br />
75<br />
Sobre a crise na Igreja na fase pós-conciliar, cfr. Car<strong>de</strong>al Joseph Ratzinger, Rapporto sulla Fe<strong>de</strong>, Edizioni<br />
Paoline, Milão, 1985, 218 pp.<br />
76<br />
Cfr. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação”, 6<br />
<strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1984.<br />
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