1987 - Projeto de Constituiçao angustia o país
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6 . “Participação igualitária no processo cultural”<br />
Prescreve o Substitutivo Cabral 2 : “Art. 243 – O Estado garantirá a cada um o pleno<br />
exercício dos direitos culturais e a participação igualitária no processo cultural e dará proteção,<br />
apoio e incentivo às ações <strong>de</strong> valorização, <strong>de</strong>senvolvimento e difusão da cultura”.<br />
Que se <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r por “garantirá a cada um ... a participação igualitária no processo<br />
cultural”? A frase é ambígua e pouco clara. Entre as interpretações possíveis, é o caso <strong>de</strong> examinar<br />
algumas:<br />
a ) Pressuporá ela que cada indivíduo po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve dar um contributo igual para o processo<br />
cultural da socieda<strong>de</strong>? A hipótese aberra tanto do senso comum que se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>scartar.<br />
b ) Pressuporá então que o Estado assegura que cada grupo étnico po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve dar igual<br />
contributo para o processo cultural comum? A idéia também parece absurda, mas a alusão, no<br />
parágrafo único <strong>de</strong>sse artigo, às “manifestações ... das culturas indígenas, das <strong>de</strong> origem africana e<br />
das <strong>de</strong> outros grupos participantes do processo civilizatório brasileiro” sugere que talvez <strong>de</strong>va ser<br />
essa a intelecção da frase.<br />
Se assim for, estamos diante <strong>de</strong> um ápice <strong>de</strong> dirigismo utópico. Pois a cultura <strong>de</strong> um país<br />
não é produto principal da ação do Estado, mas da socieda<strong>de</strong>. E como tal, a elaboração da cultura<br />
constitui um fenômeno vivo e orgânico. Também num país policultural, a elaboração da cultura se dá<br />
em função <strong>de</strong> fatores históricos, sociológicos, psicológicos e outros, com os quais o Estado pouco ou<br />
nada tem que ver. De sorte que a “garantia”, dada a todos, <strong>de</strong> uma igual participação, só por meio <strong>de</strong><br />
uma tirânica, meticulosa e contínua intervenção do Estado na elaboração cultural po<strong>de</strong>ria ser obtida.<br />
Por exemplo, na cultura <strong>de</strong> um país, cada contingente populacional tem habitualmente uma<br />
influência proporcionada ao número <strong>de</strong> pessoas que o integram. É o caso da população <strong>de</strong> origem<br />
lusa, no Brasil. Mas haverá zonas em que o elemento luso-brasileiro dispõe <strong>de</strong> uma maioria muito<br />
menos acentuada. É o caso <strong>de</strong> certas regiões dos Estados do Paraná, <strong>de</strong> Santa Catarina, do Rio Gran<strong>de</strong><br />
do Sul, nos quais o contingente alemão é mais numeroso do que em qualquer outra unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa<br />
Fe<strong>de</strong>ração. É este também o caso do Estado <strong>de</strong> São Paulo, no qual os agrupamentos populacionais<br />
italianos, sírios, espanhóis e japoneses são maiores do que em quase todo o resto do País; sem que,<br />
entretanto, a influência luso-brasileira <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser a mais acentuada. E assim por diante.<br />
De outro lado, po<strong>de</strong> acontecer que, por suas qualida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>terminado grupo populacional<br />
minoritário, exerça influência sobre os <strong>de</strong>mais grupos populacionais igualmente minoritários, ou<br />
então majoritários. Essa filtração <strong>de</strong> influência <strong>de</strong> um setor minoritário po<strong>de</strong> ser particularmente<br />
acentuada, caso o idioma falado num setor minoritário seja parecido ao da maioria.<br />
Nesse sentido, o espanhol e o italiano têm possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> contribuir para a formação <strong>de</strong><br />
uma cultura global brasileira mais do que os representantes <strong>de</strong> outros idiomas menos parecidos com<br />
o nosso, como o francês. E notadamente os <strong>de</strong> certos idiomas sem raiz latina, como o árabe e o<br />
japonês.<br />
De qualquer forma, uma cultura global e unitiva é o ponto <strong>de</strong> convergência <strong>de</strong> tudo quanto<br />
convive: indivíduos, grupos étnicos ou idiomáticos etc. e só terá autenticida<strong>de</strong> a cultura assim<br />
formada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que seja produto espontâneo <strong>de</strong>sses ou <strong>de</strong> outros fatores.<br />
Na medida em que a ação intencional do Estado procure “fabricar” <strong>de</strong> modo artificial uma<br />
cultura, ou pelo menos dirigir em suas linhas mestras uma planificação cultural, é quase impossível<br />
que à ação <strong>de</strong>le não se mesclem, como fatores inseparáveis, o utopismo, o <strong>de</strong>spotismo dirigista e a<br />
gaucherie sempre presente na ação estatal quando ela se ingere no que não lhe é próprio. Esse<br />
princípio não exclui, evi<strong>de</strong>ntemente, a ação supletiva do Estado nas ocasiões em que ela se torne<br />
necessária, e ipso facto legítima.<br />
c ) Outra eventual interpretação da frase “garantirá a cada um ... a participação igualitária<br />
no processo cultural” consistiria em que o Estado assegure a todos a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso ao processo<br />
cultural comum.<br />
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