Edição Nº 19 - Uneb
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Odemodé egbé asipá: para além do “ensino da história e cultura afro-brasileira”<br />
1. Introdução<br />
Onilewa alabê Konko<br />
Onilewa alabê Konko<br />
Alabê koriko koriko koriko<br />
Alabê koriko 1<br />
(Alabê o que possui a honorabilidade de membro<br />
da casa Alabê canta como o pássaro koriko)<br />
Alabê é um componente da orquestra ritual<br />
dentro da tradição litúrgica africano-brasileira.<br />
Os alabês são aqueles que devem conhecer o<br />
toque do atabaque, o ritmo, os ritmos percussivos<br />
rituais, as saudações e as cantigas do repertório<br />
litúrgico da tradição. (LUZ, <strong>19</strong>95)<br />
A música alabê traz uma ordem de elaboração<br />
de mundo inerente ao processo civilizatório<br />
africano-brasileiro. O alabê é, antes de tudo,<br />
um membro da casa e possui honorabilidade por<br />
isso, ou seja, há uma implicação de ordem<br />
interpessoal, o sentimento de pertencer a uma<br />
comunalidade 2 , há uma elaboração existencial<br />
da sua presença no mundo. É também uma função,<br />
um título. Há uma relação dialética entre o<br />
técnico e o estético que se unem para a realização<br />
da dimensão nagô Odara 3 das formas de<br />
comunicação africano-brasileiras em meio ao<br />
ato litúrgico.<br />
Ser alabê significa dignificar a tradição em<br />
cada ato litúrgico, ser responsável pela manutenção<br />
dos instrumentos rituais, pelo toque do<br />
atabaque. O alabê deve conhecer as saudações,<br />
as canções, é responsável pela comunicação<br />
entre o aiyê, este mundo, e o orum, o além 4 . É a<br />
concretização da dimensão técnica, do saber tocar<br />
e da responsabilidade da atividade ritual e da<br />
dimensão estética, do conhecimento sobre a<br />
música e todo universo simbólico que a envolve,<br />
um processo que proporciona a afirmação da<br />
identidade própria dos membros da comunidade.<br />
As reflexões sobre a música Alabê remetem<br />
à dinâmica pedagógica do Projeto Odemodé<br />
Egbé Asipá – Juventude da Sociedade Asipá,<br />
que contou com a participação de parte dos jovens<br />
alabês da comunidade-terreiro Ilê Asipá<br />
localizada em Salvador/Bahia. Ser alabê na<br />
comunidade-terreiro significa ter uma referência<br />
de pertencimento, ter uma função, e acima<br />
de tudo, uma identificação com os valores culturais<br />
da comunidade.<br />
O Projeto Odemodé Egbé Asipá, realizado<br />
pela comunidade-terreiro Ilê Asipá, foi elaborado<br />
a partir dos valores culturais e existenciais<br />
desses jovens, que são ilustrados com a música<br />
alabê.<br />
Apresento a perspectiva pedagógica do Odemodé<br />
como uma iniciativa capaz de contemplar<br />
as propostas da Lei 10.639/03, mas que a<br />
transcende, possibilitando a criação de uma<br />
pedagogia contrária à política de recalque à afirmação<br />
da identidade dos afro-descendentes,<br />
pois essa perspectiva pedagógica foi elaborada<br />
a partir da referência existencial dos jovens, dos<br />
valores da comunidade.<br />
Pretendo analisar os pressupostos da Lei e<br />
apresentar a perspectiva pedagógica do projeto<br />
Odemodé, que tem como uma das suas principais<br />
características a de recriação de uma linguagem<br />
ético-estética africano-brasileira aplicada<br />
à Educação, visando gerir os aspectos<br />
mencionados – a afirmação as identidades dos<br />
jovens da comunidade Ilê Asipá e a nossa diversidade<br />
cultural.<br />
A música alabê, neste caso, implica a afirmação<br />
da identidade cultural das populações de<br />
1<br />
Música da tradição litúrgica africano-brasleira (apud<br />
LUZ, <strong>19</strong>95, p. 534).<br />
2<br />
Essa categoria foi elaborada por alguns autores, especialmente<br />
Marco Aurélio Luz, para designar a rede de relações<br />
interpessoais que caracterizam a forma social presente<br />
em comunidades de origem africana no Brasil.<br />
3<br />
Categoria utilizada por alguns autores, entre eles<br />
Narcimária C. P. Luz e Juana Elbein dos Santos, para<br />
caracterizar a dimensão estética presente nas formas e<br />
códigos de comunicação africano-brasileiras.<br />
4<br />
Segundo Santos (<strong>19</strong>86, p.53) a existência, dentro do sistema<br />
nagô, se desdobra em dois níveis: o aiyê e orun; aiyê<br />
corresponde a este mundo, o mundo físico concreto, e a<br />
vida de todos os seres naturais que o habitam, e orun, o<br />
outro mundo, o além, o espaço sobrenatural, uma concepção<br />
abstrata de algo imenso, infinito e distante. Muitos<br />
autores traduzem orun por céu (sky) ou paraíso (heaven)<br />
caracterizando um obstáculo teórico-epistemológico, pois<br />
a idéia de orun é abstrata, orun não é concebido como<br />
localizado em nenhuma das partes do mundo real, é um<br />
mundo paralelo ao mundo real que coexiste com todos os<br />
conteúdos deste. Cada indivíduo, cada árvore, cada animal,<br />
cada cidade possui um duplo espiritual e abstrato no orun.<br />
100 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 99-111, jan./jun., 2003