Edição Nº 19 - Uneb
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Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />
Se o sol brilha só para a burguesia – então, camaradas, apagaremos o sol<br />
(Leon Trotsky)<br />
O brado de Trotsky, de uma tribuna, durante<br />
a revolução de <strong>19</strong>17, na Rússia, citado por Jean<br />
Duvignaud (<strong>19</strong>83, p.31), é uma incitação à subversão<br />
e é exatamente esta subversão exuberante<br />
que melhor descreve o espírito da festa<br />
da Lavagem do Bonfim, realizada anualmente<br />
pelos baianos. A lavagem, apesar de integrada<br />
à dinâmica da sociedade, é um período peculiar<br />
da vida da cidade, marcado, sobretudo, pela<br />
transgressão. Como afirma Durkheim, a efervescência<br />
e o desregramento possibilitam a revificação<br />
e a renovação da ordem cultural e é<br />
durante estas manifestações sagradas que a<br />
criatividade humana atinge o apogeu. A identidade<br />
e a relação dos baianos com o sagrado<br />
estão, assim, no cerne do nosso trabalho sobre<br />
a Lavagem do Bonfim. A festa pode ser considerada<br />
uma verdadeira “liturgia de baianidade”,<br />
construída a partir da presença marcante das<br />
religiões afro-brasileiras, do próprio catolicismo<br />
popular e do “festar” característico destas manifestações<br />
religiosas.<br />
O ritual, na sua dimensão material e temporal,<br />
possui fronteiras e limites. O cortejo parte,<br />
na quinta-feira anterior ao dia da festa do Senhor<br />
do Bonfim, do bairro do Comércio, mais<br />
exatamente das escadarias da Igreja de Nossa<br />
Senhora da Conceição da Praia 1 , segundo Reis<br />
(<strong>19</strong>91, p.120), arquétipo cristão da mãe, na sua<br />
qualidade de conceber e de gerar a vida. O itinerário<br />
de oito quilômetros é calculado em horas<br />
de marcha e corta o centro financeiro da<br />
cidade sacralizando e modelando o espaço por<br />
um breve intervalo de tempo. São as baianas<br />
com seus corpos modelados pelos trajes típicos<br />
que reúnem os elementos ancestrais necessários<br />
à consagração do espaços. Estamos no<br />
centro da atividade ritual e o centro é um lugar<br />
ativo e móvel na festa da Lavagem do Bonfim<br />
que segue ressignificando os espaços pertencentes<br />
ao antigo bairro comercial da cidade.<br />
Após duas ou três horas de marcha o cortejo<br />
chega à Igreja do Senhor Bom Jesus do Bonfim<br />
que é lavada simbolicamente pelas baianas. Sem<br />
dúvida, pode-se perceber que é no adro da Igreja<br />
e nos arredores que a atividade ritual se concentra,<br />
mas este fato não implica que a festa,<br />
ou o próprio ritual, cesse com a passagem do<br />
cortejo. No itinerário distingue-se zonas que são<br />
objeto de maior ou menor atividade ritual e a<br />
festa prossegue em vários lugares até a madrugada.<br />
Vê-se, assim, que as ações do poder público<br />
(ou mesmo privado) no sentido de disciplinar<br />
a festa interferem diretamente na Lavagem<br />
do Bonfim. O poder das autoridades determina,<br />
em certo sentido, o avanço ou o recuo da<br />
atividade ritual e os próprios limites da festa.<br />
Como observa Marc Augé (<strong>19</strong>94, p.60), a linguagem<br />
política é naturalmente espacial; daí,<br />
certamente, o simbolismo político que se expressa<br />
no poder das autoridades de determinar limites<br />
e fronteiras. Concretamente, os caminhos<br />
trilhados pelo cortejo foram traçados pelos próprios<br />
devotos, possuem cruzamentos e praças<br />
onde os homens satisfazem cotidianamente as<br />
mais diversas necessidades, inclusive de intercâmbio<br />
econômico, cujo funcionamento implica<br />
ações econômicas, políticas e rituais.<br />
QUEM TEM FÉ VAI A PÉ!<br />
O caráter de singularidade do ritual da lavagem<br />
simbólica do Santuário do Bonfim é patente.<br />
Ao contrário das procissões religiosas tradicionais,<br />
no cortejo os devotos não acompanham<br />
as imagens dos santos. O Senhor do Bonfim<br />
não deixa a sua casa para “passear” com seus<br />
devotos pelas ruas da cidade, mas aguarda onipotente<br />
os seus filhos em sua morada: uma<br />
multidão de mais de um milhão de pessoas que<br />
acompanha desordenadamente um grupo de<br />
baianas formado, majoritariamente, por gente<br />
de santo dos Candomblés da Bahia. A lavagem<br />
da igreja é simbólica, isto é, as portas da igreja<br />
1<br />
A partir dos primeiros anos da década de <strong>19</strong>40, as escadarias<br />
da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia<br />
passaram a ser o ponto de partida do Cortejo.<br />
136 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003