Edição Nº 19 - Uneb
Edição Nº 19 - Uneb
Edição Nº 19 - Uneb
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Eduardo Alfredo Morais Guimarães<br />
a “baianidade”. O ritual reproduz o mundo vivido<br />
pelos baianos, mas também se insere em<br />
outro mundo, possuidor de uma lógica própria<br />
apontando modos alternativos de comportamento,<br />
um mundo sagrado capaz de captar e manejar<br />
forças numinosas 4 . O ritual da lavagem expressa<br />
a forma como uma sociedade dividida<br />
em diversos domínios e éticas encontra sua totalidade,<br />
ou, utilizando as palavras de Roberto<br />
DaMatta numa afirmação de base genuinamente<br />
durkheimiana, “... os rituais servem, sobretudo<br />
na sociedade complexa, para promover a<br />
identidade social e construir o seu caráter”<br />
(<strong>19</strong>79, p.24). Sem dúvida, é impossível pensar<br />
a cidade do Salvador sem suas Lavagens e, mais<br />
impossível ainda, pensar a cidade sem a Lavagem<br />
do Bonfim.<br />
As reflexões de Van Gennep (<strong>19</strong>78) sobre<br />
os ritos de passagem são esclarecedoras. No<br />
ritual os participantes são convidados a tomar<br />
um banho purificador, se purificam, se lavam<br />
e se limpam. Inegavelmente, o ritual está relacionado<br />
com as manifestações religiosas afrobrasileiras.<br />
O contato com as águas de cheiro<br />
das baianas garante uma imersão purificadora,<br />
são as águas de Oxalá 5 , orixá da criação. As<br />
águas simbolizam regeneração, operando um<br />
renascimento através do axé de Oxalá, energia<br />
que garante a dinâmica da vida. O simbolismo<br />
da água como fonte de pureza, fertilidade e<br />
vida surge com toda força (BRUNI, <strong>19</strong>94, p.64).<br />
O ritual assinala o início de um novo ciclo temporal<br />
que deve ser marcado pela harmonia.<br />
Como toda atividade religiosa das religiões Afro-<br />
Brasileiras, a lavagem significa uma troca. A<br />
maior oferenda dos participantes é o sacrifício<br />
de seguir o trajeto do cortejo a pé – que tem fé<br />
vai a pé!, afirmam os participantes.<br />
Como nas danças rituais realizadas nos terreiros,<br />
o ritual da lavagem tem o seu ponto focal<br />
na mulher. São baianas dos candomblés,<br />
casas de Umbanda, ou mesmo baianas de outros<br />
credos, que com graça e impetuosidade<br />
seguem dançando pelas ruas acompanhadas de<br />
perto pelo Afoxé Filhos de Gandhy, seguindo o<br />
toque do gexá. Os dirigentes do Afoxé seguem<br />
de perto o grupo de baianas e, com a participação<br />
ativa dos integrantes da agremiação, procuram<br />
suprir as necessidades do cortejo. O ritmo<br />
seguido é o mesmo ritmo litúrgico dos terreiros<br />
e possibilita a distribuição do axé de Oxalá.<br />
O rito aparece, então, como um processo conjuntivo<br />
que objetiva, não obstante as distensões<br />
existentes na sociedade, manter a harmonia do<br />
participante individual, da comunidade e do próprio<br />
universo. O sacrifício ou a oferenda é<br />
dedicada ao Senhor do Bonfim, identificado com<br />
o Orixá do Candomblé, Oxalá, em virtude de<br />
homologias entre os respectivos arquétipos. De<br />
um lado, Senhor do Bonfim, Jesus Cristo, o filho<br />
de Deus; de outro, Oxalá, o mais poderoso<br />
dos orixás, responsável por toda a criação.<br />
Observamos, então, o caráter singular da prática<br />
religiosa dos participantes, que procuram interpretar<br />
o ritual à sua maneira. Eles são na<br />
sua maioria católicos, mas podem ser também<br />
de Candomblé, de Umbanda, Espíritas, ou mesmo<br />
sem religião. Para os praticantes das religiões<br />
afro-brasileiras, a religião abarca todas<br />
as esferas da vida e a lavagem surge como um<br />
ritual que transmite axé indispensável à dinamicidade<br />
da própria vida.<br />
O Senhor do Bonfim pode ser um símbolo<br />
pertencente ao universo simbólico católico; no<br />
entanto, não há incongruência no seu culto por<br />
parte dos adeptos das religiões afro-brasileiras.<br />
O campo simbólico/religioso em questão é marcado<br />
pela “interculturalidade” e modelos míticos<br />
e litúrgicos correlacionam-se de maneira analógica.<br />
O Senhor do Bonfim é identificado com o<br />
orixá do Candomblé, Oxalá, mas esta identificação<br />
parece resumir-se numa analogia entre<br />
os arquétipos e esta analogia tem limites. Os<br />
festeiros não transferem para o Senhor do<br />
Bonfim os mitos ligados ao orixá do Candomblé;<br />
da mesma forma, não acreditamos que algum<br />
festeiro acredite que Oxalá foi crucifica-<br />
4<br />
Termo utilizado por K. Otto, experiências provocadas<br />
pela revelação de um aspecto do poder divino... (citado<br />
por Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano: a essência das<br />
religiões. Lisboa: Livros do Brasil, [<strong>19</strong>-?], p. 24.)<br />
5<br />
Oxalá é o primeiro dos Orixás, recebeu de Olorum, deus<br />
supremo, criador de todos os orixás (Cf. VERGER, <strong>19</strong>81,<br />
p.21-22), a tarefa de criar a terra com tudo em que nela<br />
existe.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003<br />
139