Edição Nº 19 - Uneb
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José Eduardo Ferreira Santos<br />
de 320 crianças e adolescentes, percorrendo as<br />
ruas do bairro do Boiadeiro e da rua 1 o de Novembro,<br />
justamente num momento em que a<br />
violência havia tomado conta da vida dos moradores.<br />
O texto que segue remonta aos preparativos<br />
e a toda a dinâmica educativa e cultural<br />
que foi tomando conta de uma área de Novos<br />
Alagados, onde a violência chegou a níveis insuportáveis<br />
no período. O aspecto interessante<br />
é que a festividade dominou as ruas e contagiou<br />
as famílias que contribuíram para a realização<br />
do folguedo.<br />
“Os devotos do Divino /<br />
vão abrir sua morada”<br />
Pela primeira vez estamos realizando a experiência<br />
de propor uma Folia de Reis na festa natalina<br />
do Centro Educativo João Paulo II. Os ensaios<br />
estão transcorrendo com uma consciência de<br />
novidade que se estende aos meninos e meninas,<br />
rapazes e moças que têm se esmerado na<br />
aprendizagem dos cantos e do uso dos instrumentos<br />
percussivos. Uma ordem no ar supera a<br />
violência do ambiente.<br />
A morada das tradições ressurge no meio de<br />
um povo que já nem se lembra delas – os mais<br />
jovens, certamente, nem sequer foram apresentados<br />
a esta forma de viver e festejar.<br />
Cantar de porta em porta, anunciar a chegada<br />
do Menino Deus – eis a tarefa da vida; de quem<br />
tem a dizer muito com a vida e não pode esperar.<br />
Para que gastar a vida com tanta dispersão,<br />
se é tão melhor viver por Ele?<br />
“Pra bandeira do menino /<br />
ser bem vinda, ser louvada”<br />
Vejo os meninos e meninas ensaiando e me<br />
recordo de um tempo que nem mesmo eu alcancei,<br />
quando os mais velhos ensinavam os cantos<br />
e a vida aos mais jovens: mistérios, rezas, cantos<br />
imemoriais, lembranças, episódios de vida e<br />
morte; alegrias e tristezas.<br />
Mas o tempo retorna. Precisamos, então,<br />
aprender a esperar. Não uma espera natimorta,<br />
mas uma espera com força, na qual a esperança<br />
existe – e resiste contra todo desânimo e desesperança.<br />
Uma mãe costura a bandeira do menino com<br />
a sagrada família... Uma avó costura as roupas<br />
dos palhaços; outra, as roupas dos músicos; as<br />
professoras retocam, dão brilho e dão os detalhes<br />
dos chapéus e das coroas.<br />
Tudo escrito, desenhado, discutido e rabiscado<br />
nas horas de almoço.<br />
Nada à toa. Tudo como se deve esperar um<br />
filho: que muda tudo e nos muda para melhor;<br />
que reorganiza nossos dias, nossas correrias.<br />
Como um menino que salta, bole, e se manifesta<br />
como vida nova quando ouve nossas vozes ou<br />
nossas músicas no trabalho educativo de cuidar<br />
dos filhos alheios.<br />
Trabalho de amor, trabalho de artesã que nem<br />
se lembrava mais do nome do Menino Deus encarnado<br />
entronizado num estandarte rubro, como<br />
a cor do maior sinal da vida: o sangue.<br />
“Deus vos salve esse devoto /<br />
Pela esmola em vosso nome.”<br />
Desta vez, a esmola veio das mãos que costuram<br />
a vida. Vidas de filhos e maridos, mais de<br />
filhos, mas também de maridos e uma infinidade<br />
de problemas e situações difíceis de resolver. As<br />
mãos costureiras fizeram o estandarte, as roupas<br />
dos músicos que cantarão a espera eterna<br />
que temos: espera de justiça, espera de bons dias;<br />
espera de felicidade; espera da Totalidade; da<br />
Presença de Deus percebida, mas não vista.<br />
Essas mãos foram as das mães e avós dos<br />
nossos alunos... Nem sabíamos da existência<br />
destes talentos. Agora sabemos – e agradecemos<br />
o Dom recebido e compartilhado.<br />
O dom compartilhado, por Deus é aumentado.<br />
Esta verdade aprendi nestes dias e jamais esquecerei.<br />
A esmola das mães costura um ano no qual<br />
fomos roubados, violentados, entristecidos e amedrontados<br />
pela violência do bairro, mas que recompõe<br />
os laços dos filhos com um lugar que<br />
precisa de Cristo, do Menino Nascido.<br />
Sim, estas mãos nos oferecem seu sim diante<br />
da vida. Querendo dizer: “Recomecem!” “Façam<br />
um novo início, uma nova tentativa”, “O Menino vos<br />
acompanhará, sempre!”<br />
Estas mãos ensinam que sabem agradecer.<br />
O trabalho de costurar as roupas é uma gratidão<br />
ao Menino que renova tudo: a vida, o lugar, as esperanças,<br />
a nossa presença neste lugar e neste<br />
mundo.<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 113-133, jan./jun., 2003<br />
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