Edição Nº 19 - Uneb
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Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />
do! Um observação atenta revela o fervor dos<br />
devotos que rendem homenagens ao Senhor do<br />
Bonfim e pedem bênçãos à Oxalá. Para os católicos<br />
mais dogmáticos esta atitude é incorreta<br />
e até mesmo uma profanação, mas é justamente<br />
uma postura “ecumênica” e “tolerante” que<br />
impera entre a maioria dos leigos, afiliados incorporados<br />
legitimamente à Igreja Católica. O<br />
Catolicismo Popular admitiu, assim, no seu seio,<br />
o povo de santo e sua maneira festiva de viver<br />
a religião. Os Deuses africanos não foram vencidos<br />
e estão presentes no próprio universo simbólico<br />
da Igreja Católica, mas os conjuntos simbólicos<br />
mantêm-se distintos e, certamente, o<br />
mais importante, se os adeptos das religiões<br />
afro-brasileiras se retirassem da lavagem, seria<br />
provavelmente o fim do rito.<br />
Observamos que situações de conflito, envolvendo<br />
grupos rivais, são comuns e o conflito<br />
pode, em muitos casos, localizar-se no coração<br />
do próprio rito, chegando mesmo a reforçar as<br />
assimetrias existentes no universo social sem,<br />
no entanto, deixar de realçar o coletivo, a baianidade.<br />
Não podemos, portanto, menosprezar<br />
as “intenções políticas” presentes na lavagem.<br />
Na hora da luta política a lavagem assume as<br />
características de um jogo de competições que<br />
exalta as rivalidades. A direção do movimento<br />
ritual volta-se para as distensões existentes no<br />
universo social. A festa exalta os poderes dos<br />
grupos que impõem pela sua participação o seu<br />
lugar na “cidade e na sociedade política”<br />
(HEERS, <strong>19</strong>87, p.17). Em determinados momentos,<br />
a lavagem também é uma “cerimônia<br />
do triunfo”, um cortejo triunfal que conduz os<br />
vencedores das contendas políticas, bastante<br />
significativo quando ocorrem mudanças políticas<br />
expressivas.<br />
Vejamos mais de perto como as mudanças<br />
políticas podem influenciar na realização da<br />
Lavagem do Bonfim,<br />
No ano de <strong>19</strong>87, o Jornal Tribuna da Bahia,<br />
de 16 de janeiro, circulou com a seguinte manchete:<br />
“Maior cortejo de toda a história da festa<br />
durou 5 horas em direção à Colina”. O ponto<br />
focal da festa era do Governador eleito pelas<br />
oposições, Waldir Pires, que, através da “sagração”<br />
pelas bênçãos das baianas, fortalecia-se<br />
para a jornada de quatro anos à frente do Governo<br />
do Estado. Cerca de 500 baianas participaram<br />
da lavagem, segundo a matéria publicada<br />
pelo jornal, em meio a mais de 600 mil pessoas<br />
que acompanhavam o ritual.<br />
A lavagem ocorreu em um momento importante<br />
da vida política do Estado da Bahia e o<br />
rito adquiriu, então, um sentido claro de “liturgia<br />
política”, como um momento de “sagração” de<br />
uma “nova ordem” construída a partir da vitória<br />
das oposição nas eleições para o Governo<br />
do Estado. O simbolismo da Lavagem do Bonfim,<br />
rito que celebra a instauração de um novo<br />
ciclo temporal, acompanhado nos momentos<br />
cruciais – lavagem das escadarias da igreja pelas<br />
baianas – por uma simbólica da limpeza e da<br />
purificação, fundia-se, então, com o entusiasmo<br />
popular pela vitória. A cerimônia celebrava,<br />
de fato, uma ordem a ser instaurada e o governador<br />
eleito – Waldir Pires – e seus seguidores<br />
monopolizaram as atenções em praticamente<br />
todos os momentos da “longa caminhada”.<br />
Na Lavagem de janeiro de <strong>19</strong>91, os pedidos<br />
dos baianos para a paz no Golfo Pérsico dominaram<br />
as atenções, ressaltando o caráter universal<br />
do ritual. Associações de classe, partidos<br />
políticos, associações carnavalescas, hotéis,<br />
agências de turismo e os mais diversos “grupos”<br />
faziam-se presentes ao cortejo, através de<br />
camisetas brancas, faixas e adesivos alusivos à<br />
paz no Golfo Pérsico. Constataram-se, ainda,<br />
mensagens pela recuperação de Irmã Dulce,<br />
“a mãe dos baianos”, religiosa que se destacou<br />
por seu trabalho pelos pobres. Faixas colocadas<br />
pela comissão, ao longo do trajeto, pediam<br />
“silêncio para Irmã Dulce” nas proximidades<br />
do Hospital Santo Antonio. A atividade ritual,<br />
sob suas diversas formas, conjugava naquele<br />
momento o participante individual, a comunidade<br />
e o próprio universo. Contrariando as expectativas<br />
da Comissão, nem o governador do<br />
Estado, nem o prefeito da capital participaram<br />
do evento e dentre os políticos que participavam<br />
do cortejo (e eram muitos) apenas o Deputado<br />
Federal Manoel Castro, virtual candidato<br />
a prefeito da capital, nas eleições de <strong>19</strong>92,<br />
acompanhou as baianas até o adro da igreja.<br />
Constatava-se, assim, um “esvaziamento” da<br />
140 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003