20.10.2014 Views

Edição Nº 19 - Uneb

Edição Nº 19 - Uneb

Edição Nº 19 - Uneb

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Sandra Simone Q. Morais Pacheco<br />

bilidade dos alimentos disponíveis nesta sociedade<br />

não são justificáveis por razões biológicas,<br />

ecológicas ou econômicas e exemplifica<br />

isso analisando o modelo de refeição em que<br />

prevalece a carne como alimento central, ficando<br />

os carboidratos e verduras como coadjuvantes.<br />

Neste modelo de refeição, o significado da<br />

centralidade da carne relaciona-se ao fato de<br />

esta evocar o pólo masculino de um código sexual<br />

da comida, que deve ter se originado na<br />

identificação indo-européia do boi com riqueza<br />

e virilidade. No imaginário da sociedade, de<br />

modo geral, uma refeição “forte”, com “sustança”,<br />

tem que ter carne.<br />

Este autor analisa também o porquê se consome<br />

carne de boi e de porco em detrimento da<br />

carne de cavalo e de cachorro na sociedade<br />

americana. Para ele os cachorros e os cavalos<br />

não são comestíveis porque participam daquela<br />

sociedade na condição de sujeitos, que têm inclusive<br />

nomes próprios. Os cachorros são como<br />

se fossem aparentados do homem e sua ingestão<br />

é assim inconcebível, enquanto os cavalos<br />

são como se fossem empregados, sendo sua<br />

ingestão não generalizada, porém concebível.<br />

Os porcos e os bois são comestíveis, pois geralmente<br />

são considerados objetos para os humanos,<br />

levam suas vidas à parte, não são complementos<br />

diretos nem são instrumentos de trabalho<br />

das atividades humanas. Para Sahlins, a<br />

comestibilidade está, portanto, inversamente<br />

relacionada com a humanidade.<br />

Uma outra questão que fornece dados interessantes<br />

para se refletir sobre o caráter sóciocultural<br />

da alimentação é a observação das<br />

mudanças ocorridas na forma de se alimentar,<br />

ao longo da história. Essa análise foi empreendida,<br />

no bojo de uma reflexão mais ampla, por<br />

Norbert Elias (<strong>19</strong>94), ao produzir uma abordagem<br />

sociológica que denominou “sociologia<br />

figuracional ou configuracional”, na qual busca<br />

entender e abordar o surgimento das configurações<br />

sociais, a partir da análise do curso das<br />

transformações ocorridas na sociedade ao longo<br />

do tempo e que desembocaram, seguindo<br />

uma direção específica, no que se denomina<br />

desenvolvimento ou civilização. Para Elias, o<br />

processo civilizador constitui uma mudança na<br />

conduta e nos sentimentos humanos rumo a uma<br />

direção muito específica, embora que não tenha<br />

sido planejada consciente ou racionalmente,<br />

isto é, através de qualquer ação intencional<br />

de pessoas isoladas ou grupos.<br />

Uma das questões mais interessantes no trabalho<br />

de Elias é a constatação de que os hábitos,<br />

incluindo-se aí os hábitos à mesa, são<br />

construídos dentro de um processo histórico de<br />

formação. Em cada momento histórico a sociedade<br />

produz comportamentos que são aceitos<br />

e introjetados por representarem as relações<br />

sociais possíveis/presentes naquele dado contexto<br />

sócio-econômico e cultural. O homem não<br />

introduziu determinados utensílios à mesa, mediação<br />

entre o alimento e o organismo, sem que<br />

mudanças ocorressem na sociedade e dentro<br />

de si mesmo.<br />

O autor, ao analisar as mudanças operadas<br />

no âmbito do uso do garfo, observa que esse<br />

utensílio surgiu no fim da Idade Média com o<br />

objetivo de retirar alimentos da travessa comum,<br />

sendo paulatinamente introduzido como utensílio<br />

de uso individual. De início, o uso do garfo<br />

para se levar o alimento à boca era considerado<br />

um sinal exagerado de refinamento e costumava<br />

ser seriamente reprimido. Mais de cinco<br />

séculos se passariam para que o uso deste utensílio<br />

atendesse a uma necessidade mais geral:<br />

só a partir do século XVI ele passou a ser usado,<br />

e as pessoas que o fizeram inicialmente foram<br />

ridicularizadas por essa maneira “afetada”<br />

de comer, sendo que a inabilidade era tanta que<br />

metade da comida caía no caminho do prato à<br />

boca. Poder-se-ia perguntar por que se come<br />

com o garfo e não com as mãos e a resposta<br />

levaria à idéia de que comer com garfo é “civilizado”,<br />

além de mais higiênico. Para Elias:<br />

A eliminação do ato de comer com a mão do próprio<br />

prato pouco tem a ver com o perigo de contrair<br />

doença, a chamada explicação “racional” (...).<br />

O garfo nada mais é que a corporificação de um<br />

padrão específico de emoções e um nível específico<br />

de nojo. Por trás da mudança nas técnicas à<br />

mesa entre a Idade Média e os tempos modernos<br />

reaparece o mesmo processo que emergiu<br />

na análise de outras explicações desse mesmo<br />

processo: uma mudança na estrutura de impulsos<br />

e emoções (<strong>19</strong>94, p.133).<br />

Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 181-188, jan./jun., 2003<br />

185

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!