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Edição Nº 19 - Uneb

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Lavagem do Bonfim: entre a produção e a invenção da festa<br />

nhor Bom Jesus do Bom Fim e as “obrigações”<br />

com Oxalá. Como toda procissão, antes da saída<br />

do cortejo, os “participantes” são convidados<br />

a assistirem uma Missa, celebrada na Igreja<br />

de Nossa Senhora da Conceição da Praia,<br />

ou melhor, eram convidados, pois a missa foi<br />

suspensa por determinação do Arcebispo da<br />

Bahia, Dom Lucas Moreira Neves, no início dos<br />

anos <strong>19</strong>90. No centro do cortejo está a “parte<br />

das baianas”, comprimidas pela multidão que<br />

insiste em acompanhá-las, até as escadarias do<br />

santuário. Este núcleo, apesar dos esforços dos<br />

organizadores, permanece formado por um conjunto<br />

desordenado do qual participam as autoridades,<br />

as baianas e gente do povo que consegue<br />

furar o cordão de isolamento. Observamos,<br />

ainda, que, ao contrário das procissões religiosas,<br />

não existem andores carregados pelos<br />

membros de confrarias religiosas, autoridades<br />

civis ou militares, não existindo, portanto, imagens<br />

de santo que são intermediadas pelas autoridades.<br />

A multidão de devotos segue em<br />

direção à Colina Sagrada, cortando o centro<br />

financeiro da cidade do Salvador, uma região<br />

do espaço urbano dominado pelo capital financeiro,<br />

“participando” efetivamente do ritual, reconhecendo<br />

o poder das autoridades, talvez,<br />

mas, acima de tudo, expressando todo o seu<br />

poder. O território do trabalho e da fadiga dá<br />

lugar para o território da dança e do prazer.<br />

O cortejo é seguido de perto pelas autoridades<br />

policiais. As instituições financeiras e demais<br />

empresas que operam na área do comércio<br />

reforçam a segurança, isolando as fachadas<br />

dos prédios com tapumes. O cortejo é também<br />

um perigo para a cidade; o território do<br />

trabalho, da fadiga, espaço mais “produtivo”<br />

da sociedade capitalista é invadido pelo carnaval,<br />

pela dança e pelo prazer. O Estado, através<br />

do seu poder de polícia, opera como árbitro<br />

orientando a ocupação do espaço, determinando<br />

o que pode e o que não pode acontecer.<br />

A Lavagem do Bonfim celebra a mudança.<br />

O rito marca a entrada em um novo período<br />

temporal. O conteúdo simbólico da lavagem leva<br />

as marcas da cerimônia das Águas de Oxalá,<br />

águas para lavar Oxalá – lavagem dos axés de<br />

Oxalá –, realizada nos terreiros de Candomblé,<br />

particularmente os de origem Kêto. Segundo<br />

Pierre Verger (<strong>19</strong>81, p.261):<br />

... os descendentes de africanos, movidos por<br />

um sentimento de devoção, tanto ao Cristo como<br />

ao Deus africano, fizeram uma aproximação entre<br />

as duas lavagens: a dos axés de Oxalá e aquela<br />

do solo da igreja que leva o nome católico do<br />

mesmo orixá.<br />

Não podemos esquecer que as “Baianas do<br />

Candomblé”, com seus trajes típicos, são o centro<br />

focal do cortejo e, principalmente, da lavagem<br />

simbólica do Adro da Igreja. Da mesma<br />

forma, as águas utilizadas na lavagem do Adro<br />

da Igreja – Águas de Cheiro – são preparadas<br />

seguindo rituais próprios das religiões afro-brasileiras.<br />

Por outro lado, a Lavagem, como o<br />

Carnaval, se situa numa escala cronológica<br />

cíclica, independente de datas fixas 6 , uma cronologia<br />

cósmica, diretamente relacionada com<br />

as divindades (DAMATTA, <strong>19</strong>79, p.43).<br />

Acreditamos que é possível compreender<br />

agora as ações das autoridades públicas no sentido<br />

de enquadrar a Lavagem na “ordem”. O<br />

Estado, em nome dos empresários do setor cultural<br />

e, em particular, do turismo, surge hoje<br />

como principal incentivador da lavagem, mas<br />

também como o maior repressor do desregramento.<br />

Nesta nova fase assistimos ao predomínio<br />

de uma lógica comercial que busca a padronização<br />

do cortejo com o “congelamento”<br />

da carnavalização, estreitamente vinculada às<br />

festas religiosas de origem ibérica e um forte<br />

incentivo às manifestações de raízes africanas.<br />

No entanto, há uma diferença importante<br />

entre um sanduíche que se compra na rede Mac<br />

Donalds e uma festa religiosa. As manifestações<br />

culturais são um espaço de luta e distinção<br />

e as diferenças funcionam como signos<br />

distintivos. As ações dos poderes públicos e da<br />

própria indústria cultural não conseguem circunscrever<br />

o ritual ao espaço exclusivo das religiões<br />

afro-brasileiras, em particular a reverência de<br />

um culto à Oxalá. Não conseguem disciplinar e<br />

enrijecer completamente a Lavagem do Bonfim,<br />

mas as manifestações mais carnavalizadas se<br />

6<br />

A Festa do Bonfim ocorre no segundo domingo depois<br />

da Epifania (Festa de Reis).<br />

142 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 135-146, jan./jun., 2003

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