Edição Nº 19 - Uneb
Edição Nº 19 - Uneb
Edição Nº 19 - Uneb
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Fábio Josué Souza Santos<br />
que se nega é uma determinada face do rural: a<br />
roça, o rural dos pequenos, dos fracos, dos pobres,<br />
da agricultura de subsistência; aquilo que<br />
foi posto à margem pelo afã do ‘progresso’ capitalista<br />
que a Modernidade pretendeu instituir<br />
entre nós. A roça, por ser o residual, passa então<br />
a ser considerado um ‘não lugar’; ou, pelo<br />
menos, um lugar que deveria, pela mão assistencialista<br />
e interventora do Estado, ser transformado,<br />
ser convertido, ser eliminado, retirando-se,<br />
assim, da Nação os entraves ao nosso<br />
desenvolvimento: o povo rude, apegado às tradições<br />
e a valores comunitários; avessos, portanto,<br />
à lógica economicista-produtivista-prometeica-individualista<br />
que a Modernidade, vestida<br />
aqui com o manto de um capitalismo subdesenvolvido,<br />
pretendia imprimir entre nós.<br />
Nesse sentido, como apontamos acima, autores<br />
como Foucault (<strong>19</strong>99; 2002) e Martins<br />
(2000) vazam a “bacia semântica” elaborada<br />
ora sob as luzes da racionalidade européia, ora<br />
nos centros de ilustração acadêmica do eixo<br />
industrializado do País (o Sul-Sudeste) e que,<br />
até então, era ‘importada’ enquanto conceitos<br />
para explicar as realidades residuais... Assim,<br />
categorias como “campo”, “meio rural”, “fazenda”,<br />
“camponês”, “campesino”, “campesinato”,<br />
“caipira” eram forçosamente utilizadas<br />
para dar conta de uma realidade que se<br />
nutria de outras formas de arkhé. Essas categorias<br />
são aqui, no contexto baiano, especificamente<br />
nas regiões do Recôncavo Sul e do Vale<br />
do Jiquiriçá, destituídas de significado; soamnos<br />
estranhas, deslocadas, como estaremos<br />
especificando no tópico a seguir.<br />
4.2. As especificidades do rural no<br />
contexto de Amargosa: “Nem campo,<br />
nem fazenda, isso aqui é roça<br />
mesmo, seu professor!”<br />
O desajuste entre as categorias teóricas<br />
importadas pela Universidade de outros contextos<br />
e a realidade local evidencia-se na ausência<br />
dos referidos termos no linguajar popular<br />
utilizado na região. Em nossa pesquisa, quando<br />
percebemos a dissonância entre o dizer da<br />
universidade e o dizer do povo, detivemo-nos<br />
em indagar os moradores da zona rural sobre<br />
essa questão, a escutar as vozes daqueles em<br />
nome de quem a universidade arrogantemente<br />
se arvora a se pronunciar. D. Maria, 68 anos,<br />
moradora da localidade da Palmeira, município<br />
de Amargosa, indagada sobre “como o povo<br />
chama as terras daqui?”, categoricamente<br />
responde: “Nem campo, nem fazenda, isso<br />
aqui é roça mesmo, seu professor!”.<br />
Nesse sentido, pontuamos que uma pesquisa<br />
que se proponha a discutir a realidade da<br />
zona rural baiana, especificamente nas regiões<br />
do Recôncavo Sul e Vale do Jiquiriçá, não deve<br />
desconsiderar a riqueza de significado que o<br />
termo roça abarca. Assim, em nossos trabalhos,<br />
o termo roça emerge de uma expressão<br />
muitas vezes usada pejorativamente, para assumir<br />
o significado de uma categoria teórica<br />
fundamental na contextualização e na compreensão<br />
da realidade sobre a qual nos temos debruçado.<br />
Em substituição a fazenda (utilizado<br />
em todo o País e que, para nós, tem sido reservado<br />
para nomear grandes propriedades), a sítio<br />
(reservado para se referir a pequenas propriedades,<br />
mas raramente usado entre nós) e,<br />
ainda, a campo (muito utilizado no Sul, Sudeste<br />
e Centro-Oeste do País), a opção pelo emprego<br />
do termo roça se faz não apenas por uma<br />
diferença etimológica ou uma regionalidade lingüística.<br />
Mais que isso, há uma diferença, diríamos,<br />
epistemológica! Tentamos, adiante, estabelecer<br />
a distinção entre os termos fazenda,<br />
sítio, campo e roça, buscando conceitualizálos,<br />
justificando, por fim, a opção pelo emprego<br />
deste último.<br />
No contexto regional onde se situa o município<br />
de Amargosa, a expressão “fazenda” parece<br />
reportar-se a médias ou grandes propriedades,<br />
geralmente destinadas à monocultura,<br />
com fins de comercialização. Para as propriedades<br />
destinadas à produção menor, em pequena<br />
escala e que ocorre de forma variada e simultânea<br />
em um mesmo “pedaço de terra”,<br />
costuma-se chamar “roça”. Assim, a roça é a<br />
pequena propriedade, geralmente destinada ao<br />
cultivo de variadas lavouras de pequena importância<br />
econômica, destinada à subsistência. Do<br />
que se colhe na roça, tira-se uma parte para a<br />
alimentação e a outra é vendida na cidade, nas<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 147-158, jan./jun., 2003<br />
153