Edição Nº 19 - Uneb
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Yara Dulce B. de Ataíde; Edmilson de Sena Morais<br />
há identificação ou que não fazem parte do contexto<br />
social no qual o sujeito está inserido. O<br />
outro, o alienígena, o diferente, transforma-se<br />
numa figura ameaçadora e persecutória, que<br />
provoca a criação de barreiras e defesas que<br />
visam a necessidade de proteção e isolamento<br />
contra o perigo iminente que este outro representa.<br />
Do ponto de vista de Nidiane:<br />
– A metade das meninas mora aqui, mas elas não<br />
moram bem aqui em cima... moram lá em baixo...<br />
na tal da invasão, a Rua Direta da Constituinte...<br />
são elas mesmas que costumam chamar lá de<br />
invasão... são as próprias moradoras da invasão<br />
que falam assim... elas não são pessoas de boa<br />
reputação, com quem se deva andar junto...<br />
Fica bem clara, na fala de Nidiane, a diferença<br />
estabelecida a partir do referencial residencial:<br />
as meninas do Alto de Coutos são representantes<br />
de um grupo - as daqui de cima -<br />
e as demais, aquelas outras, são de outro grupo,<br />
as de lá de baixo.<br />
O conflito entre esses dois grupos é reforçado<br />
pelo fato de que as jovens da invasão da<br />
Nova Constituinte já são mães-de-família, mas<br />
não agem como tais, e “não se comportam como<br />
meninas direitas”. A maternidade precoce e<br />
sem companheiro, isto é, sem o marido ratificador<br />
da relação matrimonial, ainda é um grande<br />
diferenciador em nossa sociedade. Como<br />
ficou evidente na entrevista com Nidiane, uma<br />
parte dessas jovens possui os referenciais típicos<br />
da família tradicional. Mesmo as pessoas<br />
de classes populares, pauperizadas pela conjuntura<br />
presente, ainda preservam os valores<br />
da boa conduta que determinam a identidade<br />
de uma pessoa de família, de uma mulher digna<br />
e de respeito.<br />
Como resultado desses olhares diferenciadores,<br />
do ponto de vista de quem vê o outro, as<br />
jovens lá de baixo foram rejeitadas e excluídas<br />
do grupo lá de cima porque não possuíam<br />
referenciais que se coadunassem com os princípios<br />
éticos adotados pelas referidas jovens.<br />
Não se sentindo acolhidas pelas de lá de cima,<br />
em contrapartida, as rejeitadas, as de lá de<br />
baixo, denominaram as de lá de cima de<br />
patricinhas, ou seja, as sofisticadas.<br />
Nidiane se considera uma pessoa comunicativa,<br />
pois “se comunica com todo mundo”.<br />
De fato, seu relato foi animado, seguro, direto e<br />
cheio de detalhes. O que mais nos impressiona<br />
é a forma entusiasmada com que ela abraçou a<br />
proposta do curso. Ela vibrou com aquela nova<br />
perspectiva. A identidade negra aflorou nos seus<br />
gestos e nas suas falas. Para ela, tudo aquilo<br />
era algo inusitado. A beleza negra tornou-se um<br />
grande diferenciador em sua vida, não só no<br />
processo de construção da sua identidade étnica<br />
e de gênero, enquanto mulher negra, mas<br />
também enquanto profissional.<br />
Nidiane, apesar de considerar constrangedoras<br />
algumas situações geradas no seu processo<br />
de socialização, terminou por acreditar<br />
que até o final do curso aquelas situações iriam<br />
se modificar. Face à maneira como o curso estava<br />
sendo conduzido, ela acreditava que as situações<br />
problemáticas seriam satisfatoriamente<br />
resolvidas. O clima no qual o curso foi realizado<br />
– sob a égide da sociabilidade e da liberdade<br />
– sinalizava para Nidiane a perspectiva<br />
de uma coexistência pacífica para o grupo, o<br />
que de fato veio a acontecer. As arestas foram<br />
sendo esmerilhadas pelos valores éticos propostos<br />
e trabalhados durante todo o processo de<br />
interações múltiplas e de constantes trocas de<br />
conhecimentos e reconhecimentos.<br />
Em Coutos, há várias ruas com nomes de<br />
países africanos e asiáticos, a começar pelo<br />
próprio nome da instituição que fica na Rua do<br />
Congo. Outras ruas como Sudão, Guiné etc,<br />
também estão presentes naquele espaço.<br />
Nidiane, apesar de não saber informar a respeito<br />
dos nomes das ruas daquele lugar,<br />
ressignifica a presença desses nomes naquele<br />
local. Para ela:<br />
– Ruas com nomes de países africanos?... acho<br />
que tem tudo a ver com a África, com a raça<br />
negra... tem tudo a ver... aí é que a gente vai ver<br />
que a cultura deles está chegando para nós...<br />
chegando para a gente aqui... já chegou, mas a<br />
gente não sabia... nossos olhos, nossa visão<br />
estavam tapados... agora é que estão se abrindo,<br />
principalmente com este curso... abriu muito<br />
nossa visão para que a gente viesse enxergar a<br />
beleza deles e viéssemos colocar em prática esse<br />
trabalho da costura étnica...<br />
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 81-98, jan./jun., 2003<br />
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