Edição Nº 19 - Uneb
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Do monopólio da fala sobre educação à poesia mítica africano-brasileira<br />
Foto 2 - Exú<br />
Amuniwá – Argila e<br />
cimento / Altura: 67<br />
cm - (Acervo de<br />
Mestre Didi –<br />
Imagem gentilmente<br />
cedida pelo artista<br />
plástico).<br />
O útero, a relação sexual, a interação do sêmen<br />
com o óvulo, a placenta fecundada, a circulação<br />
sanguínea e de outras substâncias, a fala,<br />
são alguns exemplos relacionados ao Orixá Exu.<br />
É importante destacar que o sêmen e o óvulo<br />
caracterizam-se como representações das<br />
matérias massas e dos princípios genitores masculino<br />
e feminino. Através de Exu, a interação<br />
é possibilitada. É ele quem desloca a matéria<br />
de origem Orun para o aiyê, dinamizando o<br />
desenvolvimento que a envolve. 8<br />
Exu também está associado às ações de<br />
introjeção e restituição e essas representações<br />
são encontradas em muitas esculturas que o<br />
apresentam chupando dedo, fumando cachimbo,<br />
soprando uma flauta, etc.<br />
As funções da boca, entre elas a fala e a<br />
comunicação, também se relacionam a Exu. Exu<br />
possibilita o ciclo vital, um corpo humano capaz<br />
de falar, ouvir, sentir e fazer expandir o princípio<br />
de movimento.<br />
Pois bem, é no seio desse universo míticosagrado,<br />
abordado até aqui, que transbordam as<br />
percepções lúdicas, de encantamento, fascinantes,<br />
que deslumbram o conteúdo de educação<br />
que estamos propondo, causando o estilhaçamento<br />
das redomas fronteiriças que constituem<br />
a percepção linear positivista, predominante na<br />
educação erigida pelo monopólio da fala.<br />
O sagrado tem a capacidade de amenizar a angústia<br />
existencial, ou melhor, os mistérios da existência,<br />
através de elaborações e ritualizações<br />
diversas sobre a origem e o devir. Além disso ele<br />
promove sobretudo a satisfação do desejo de<br />
estar junto, origem da vida societária. (...) Porém,<br />
as exigências produtivistas mercantilistas das<br />
sociedades industriais atropelam a temporalidade<br />
e espacialidade do sagrado, tentando esvaziar<br />
sua significação, recalcando as linguagens<br />
míticas e místicas através do enaltecer da técnica<br />
e da ciência, sobretudo reprimindo as<br />
alteridades, através da denegação da morte, o<br />
outro que há em nós mesmos, e pelo qual deixaremos<br />
de ser o que somos agora, transformando-nos<br />
um pouco a cada dia que passa, nesta<br />
ininterrupta e inexorável sucessão do ciclo de<br />
morte-renascimento, do qual todos fazemos parte.<br />
(LUZ, <strong>19</strong>92, p.118).<br />
Pelo exposto, pode-se verificar que continuamos<br />
ousando propor uma neolinguagem pedagógica<br />
ou um neocurrículo, que nos faça avançar<br />
na direção da impostergável necessidade<br />
de elaborar linguagens educacionais que invadam<br />
a ambiência escolar brasileira, inundandoa<br />
com perspectivas que a aproximem do arkhé,<br />
eidos e do ethos da tradição milenar africana,<br />
considerando o seu direito à alteridade própria<br />
das nossas crianças e jovens.<br />
De fato, aquela população infanto-juvenil que<br />
integra a comunalidade africano-brasileira teria<br />
oportunidade de freqüentar escolas que, na sua<br />
estrutura e funcionamento curricular, considerassem<br />
os valores próprios característicos da sua<br />
comunalidade, eminentemente de participação.<br />
Desejamos, portanto, provocar a ruptura com<br />
o sistema oficial de ensino vigente, que se alimenta,<br />
como vimos, do monopólio da fala que<br />
8<br />
Nas comunidades-terreiro nagô, a existência é elaborada<br />
em dois planos: o àiyéo mundo, e o òrun, que representa<br />
o além.O àiyé é o universo físico concreto, e a vida de<br />
todos os seres naturais que o habitam, portanto, mais<br />
precisamente, os ará-àiyé ou aráyé, habitantes do mundo,<br />
a humanidade. Já o òrun corresponde ao espaço sobrenatural,<br />
o outro mundo, o além, algo imenso e infinito. Nele<br />
habitam os ara-òrun, que são os seres ou entidades sobrenaturais<br />
(SANTOS, <strong>19</strong>85, p.17).<br />
70 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. <strong>19</strong>, p. 61-80, jan./jun., 2003